OS TEMPOS E OS MUNDOS: SOBRE A ANTIGUIDADE DOS MUNDOS
A LONGA ANTIGUIDADE DOS MUNDOS IV MUNDUS NOVUS [1] (1055 a 1749) A Longa Idade Média e a nova antiguidade
A invenção da Europa. Do sobrenatural à natureza.
O globo terrestre.
Euler Sandeville Jr.
Pesquisar é indagar a existência.
φύσις κόσμος αίων κρόνος καιρός
este mundo está em guerra, embora muitos de nós desejem a paz
como citar:
SANDEVILLE JR., Euler. “Mundus Novus (C. 1055 a 1749)“. A Natureza e o Tempo (o Mundo), on line, São Paulo, 2016-2018.
Como imagens nesta abertura desta seção, ofereço-lhes três cenas. São cenas de almoço muito sofisticadas, reproduzidas abaixo, onde a refeição é tanto ordem social quanto é inserida em uma ordem cósmica ou do destino humano.
Como você poderá verificar, esses almoços não são em nada comparáveis, nem na finalidade, enredo, técnica e suporte, contexto social. As datas de realização abrem e fecham o quatrocentos, o que obviamente não dá conta da complexidade das relações sociais e do imaginário dessa “Longa Idade Média” ou “Era Moderna”, mas é suficiente para ilustrar que ambas indicam temporalidades ampliadas para muito antes e depois da data estrita de sua criação.
A primeira, dos irmãos Limbourg (Herman, Paul, e Jean, todos falecidos com menos de 30 anos em 1416, juntamente com Jean de Berry) integra o extraordinário Les très riches heures du duc de Berry (literalmente, As muito ricas horas do Duque Jean de Berry). O Duque (1340-1416) era filho do rei João II e irmão de Carlos V da França, de Luis I de Nápoles (Duque de Anjou, 1339-1384) e de Filipe II (Duque de Borgonha, 1342-1404). Depois dos irmãos Limbourg trabalharam também no livro Jean Colombe (1430-1493) e possivelmente Barthélemy van Eyck (c. 1420-posterior a 1470).
Frères de Limbourg, Les très riches heures du duc de Berry, mês de janeiro, museu Condé, Chantilly, ms.65, f.1v, c. 1411-1416. This is a faithful photographic reproduction of a two-dimensional, public domain work of art. The work of art itself is in the public domain for the following reason: This work is in the public domain in its country of origin and other countries and areas where the copyright term is the author’s life plus 100 years or less. Disponível em commons.wikimedia.org/wiki/File:Les_Tr%C3%A8s_Riches_Heures_du_duc_de_Berry_Janvier.jpg acesso em 14/03/2016.
OS TEMPOS E OS MUNDOS: SOBRE A ANTIGUIDADE DOS MUNDOS
A LONGA ANTIGUIDADE DOS MUNDO I
A AURORA NA NEBLINA (os relatos das origens, até o neolítico) Euler Sandeville Jr. Junho de 2017 (definição da seção março de 2016), reorganização setembro de 2018.
Os vestígios no silêncio… Nossa Terra Incognita: amnésia e imaginação: hic sunt dracones [1]
como citar:
SANDEVILLE JR., Euler. “A aurora na neblina (os relatos das origens, até o neolítico)“. A Natureza e o Tempo (o Mundo), on line, São Paulo, 2016-2018.
Pesquisar é indagar a existência.
φύσις κόσμος αίων κρόνος καιρός
este mundo está em guerra, embora muitos de nós desejem a paz
“Um povo é como um homem. Quando desaparece, nada mais resta dele, se não tiver tomado o cuidado de deixar sua impressão nas pedras do caminho” (Élie Faure [2]).
Com a frase acima Élie Faure, em sua “A Arte Antiga” (1909) [2] , encerra o capítulo que trata da arte paleolítica e neolítica. Mas essa impressão deixada muita vezes é muda e silenciada hermeticamente no tempo, senão pelo ponto de onde a observamos hoje e a queremos ver como resposta para nossas suposições. Esta seção de “A Natureza e o Tempo (o Mundo)” trata desses tempos, dos quais restam apenas vestígios muito parciais e esparsos, que dão lugar a hipóteses muitas vezes mais imaginativas sobre esse passado distante do que de fato conclusões racionais. Hipóteses que, mais do que desvendar esses tempos, elucidam o modo como desejamos nos narrar e nos ver no mundo.
Seja bem vindo para adentrar a discussão sobre a longa antiguidade dos mundos.
A narrativa das origens mobilizou a imaginação e as certezas de grande parte das culturas, inclusive aquelas industriais das quais o que chamamos de contemporâneo emerge. O modo de estar lá, onde ninguém esteve, define muito do modo como pensamos e queremos estar onde estamos, e como vislumbramos nosso devir.
A Aurora na Neblina evidencia um tempo imerso no silêncio, em que procuramos recolocar em ordem um mundo passado coerente com nossa época, através de um imaginativo e progressivo dar voz a esses vestígios emudecidos do nosso mundo e da nossa própria natureza. É necessário lembrar, sobretudo, o esforço de imaginação e subordinação aos preceitos de uma época a que esses testemunhos misteriosos e instigantes do passado nos estimulam, ao termos a necessidade de condicionar suas explicações consoante aos nossos pressupostos intelectuais.
Antes da nossa, diversas sociedades constituíram ricas narrativas das origens. Obviamente não me refiro aqui aos testemunhos pré-históricos, mas a narrativas ancestrais como o Enuma Elish, Gilgamesh, o Livro do Gênesis, os Vedas e outros tantos, sem com isso querer igualar sua significação profunda. De modo algum são a mesma coisa e a chave do mítico, que modernamente com frequência lhes atribuímos, faz escapar-nos seus sentidos próprios e de uma longa duração. Apenas com isso desejo indicar como a busca de sentido atravessa “nossa” milenar jornada e nossa construção de artefatos materiais e intelectuais.
Situando-nos na contemplação do passado a partir do nosso peculiar e tão recente presente. Os exemplos a seguir podem ajudar-nos a perceber o rico campo imaginativo em que tanto estudamos quanto inventamos – e consumimos -, as nossas narrativas do passado. A interpretação das nossas origens é dependente dos complexos impasses, disputas e certezas ontológicos e conceituais que se constituíram na formação da mentalidade contemporânea remontando pelo menos aos séculos XVIII e XIX.
A descoberta no século XIX da arte parietal das cavernas suscitou grandes discussões. Isso porque não se coadunava facilmente, em um primeiro momento, com o pensamento acerca da evolução biológica e sociocultural do homem. Em 1868 um caçador chamado Modesto Cubillas tentava libertar seu cão que ficara preso nas fendas. Descobriu vestígios do que viria a ser uma das mais surpreendentes descobertas arqueológicas acerca do homem pré-histórico.
Marcelino Sanz de Sautuola (1831 — 1888), aficionado em paleontologia, desde 1876 visitou o local. Em 1878, buscando escavar restos de ossos e sílex como os que vira na Exposição Universal de Paris naquele mesmo ano, foi acompanhado de sua filha de 8 anos, Maria Sanz de Sautola y Escalante (1871-1946). A menina chegou a uma das “salas” interiores com as pinturas parietais, chamando o pai para ver as estranhas pinturas.
Maria Sanz de Sautola y Escalante. Disponível em pt.wikipedia.org/wiki/Marcelino_Sanz_de_Sautuola#/media/File:Sanz_de_Sautuola.jpg e pt.wikipedia.org/wiki/Caverna_de_Altamira sob licença livre.Marcelino Sanz de Sautuola. Disponível em pt.wikipedia.org/wiki/Marcelino_Sanz_de_Sautuola#/media/File:Sanz_de_Sautuola.jpg e pt.wikipedia.org/wiki/Caverna_de_Altamira sob licença livre.
Sautola estava convencido de serem pré-históricas, mas totalmente inéditas em relação ao que se havia descoberto até então. Em decorrência, publicou em 1880 o Breves apontes sobre alguns objetos pré-históricos da província de Santander. Porém, para sua longa aflição, a descoberta era inteiramente inconsistente com as certezas da época sobre a evolução humana e das culturas e surpreendente demais para não ser senão uma produção muito posterior. Não se encaixava. Os maiores especialistas recusaram veementemente seu trabalho.
Sautola morreu em 1888 completamente desacreditado nos círculos científicos mais influentes. Entretanto, rapidamente novas descobertas forçavam a uma revisão das certezas, que viriam a exigir que se enquadrassem esses novos testemunhos que se multiplicavam em um quadro interpretativo, uma vez que se considerava agora comprovada a sua antiguidade. Os horizontes do “homem primitivo” se alargavam, bem como suas habilidades.
Em 1902 um dos maiores críticos de Sautola publicaria o artigo La grotte d’Altamira. Mea culpa d’un sceptique (A caverna de Altamira. Mea culpa de um cético). Infelizmente Sautola não usufruiu a reabilitação de suas ousadias. Mas a pequena Maria, já então com com 22 anos a essa altura, certamente tomou conhecimento da valorização da descoberta que fizera tão precocemente com seu pai, e que tantos dissabores lhe trouxe estar à frente da ciência que ajudava a construir.
Seja como for, 14 anos após a morte de Sautola, esse acervo magnífico passou a integrar de modo coerente toda a compreensão contemporânea das origens. Em 1985 Altamira foi declarada Patrimônio da Humanidade. Nós também nos inscrevemos nessa história:
“No sítio Toca do Boqueirão da Pedra Furada, 63 datações por carbono-14 (C-14) permitiram o estabelecimento de uma coluna crono-estratigráfica que vai de 59.000 até 5.000 anos AP. Numerosas pinturas rupestres se encontram na área. Ocre vermelho utilizado para desenhar nas rochas foi encontrado em camadas com datações de entre 17.000 e 25.000 anos AP. Recentes trabalhos no pedestal do Boqueirão da Pedra Furada e no local ao ar livre próximo do Vale da Pedra Furada têm produzido mais evidências para a ocupação humana que se estende por mais de 20.000 anos, argumento é apoiado por uma série de datações por C-14 e OSL (luminescência estimulada opticamente), e pelo análise técnica do conjunto de ferramentas de pedra.(…) Enormes oficinas líticas onde os homens obtinham a matéria prima e a lascavam para fabricar ferramentas foram encontradas na região norte do em 2002. Em uma delas, milhares de vestígios líticos estavam no solo sobre uma superfície de aproximadamente 25.000 m2). Existem atualmente 737 sítios arqueológicos catalogados onde foram encontrados artefatos líticos, esqueletos humanos, pinturas rupestres com aproximadamente 30.000 figuras coloridas, que representam cenas de sexo, de dança, de parto, entre outras. Ao longo de 14 trilhas e 64 sítios arqueológicos abertos à visitação, encontramos tesouros, como os pedaços de cerâmicas mais antigos das Américas, de 8.960 anos, descobertos na Toca do Sítio do Meio.. No circuito dos Veadinhos Azuis, podemos encontrar quatro sítios com pinturas azuis, a primeira desta cor descoberta no mundo” Disponível em pt.wikipedia.org/wiki/Parque_Nacional_Serra_da_Capivara, acesso em 06/01/2019, licença Creative Commons – Atribuição-CompartilhaIgual 3.0 Não Adaptada.
Vejamos mais um exemplo, que nos fala desses tempos antigos, mas falam ainda mais de nós mesmos. A Caverna de Chauvet foi descoberta por acaso por espeleólogos amadores em 1994. Sua pintura parietal, de modo ainda mais surpreendente, chega a ser datada em cerca de 36.000 anos atrás. Observe com atenção as duas fotos a seguir, com a finalidade de nos reconhecermos nesses rostos do passado.
Réplica (inclusive das pinturas e artefatos) da caverna de Chauvet, interior, para preservar o sítio arqueológico. Inaugurada em abril de 2015, em tamanho real. Disponível em dw.com/pt-br/fran%C3%A7a-inaugura-r%C3%A9plica-da-caverna-de-chauvet/a-18407392 O sítio não indica na data visitada restrição ao uso de imagens e disponibiliza links de compartilhamento.Réplica (inclusive das pinturas e artefatos) da caverna de Chauvet, exterior, para preservar o sítio arqueológico. Inaugurada em abril de 2015, em tamanho real. Disponível em dw.com/pt-br/fran%C3%A7a-inaugura-r%C3%A9plica-da-caverna-de-chauvet/a-18407392 O sítio não indica na data visitada restrição ao uso de imagens e disponibiliza links de compartilhamento.
Sintamo-nos convidados a adentrar nesta seção a longa antiguidade dos mundos.
______________________ NOTAS
1 Frase utilizada em certo mapa medieval. Era comum na cartografia medieval também a representação de dragões e criaturas sobrenaturais. No entanto, a frase também é utilizada por programadores. No Mozilla Firefox a frase aparece quando se digita “about:config” acessando o ambiente de programação do navegador. informação disponível em pt.wikipedia.org/wiki/Hic_sunt_dracones↑.
2 FAURE, Élie [1873-1937]. A arte antiga [1909]. Trad Álvaro Cabral. São Paulo: Martins Fontes, 1990
como citar:
SANDEVILLE JR., Euler. “A aurora na neblina (os relatos das origens, até o neolítico)“. Ensino e Pesquisa, A Natureza e o Tempo (o Mundo),on line, São Paulo, 2016-2018.
[para citar este artigo conforme normas acadêmicas, copie e cole a referência acima (atualize dia, mês, ano da visita ao sítio)]
a natureza e o tempo (o mundo)
um projeto de euler sandeville
O BISÃO NA CAVERNA (A AURORA NA NEBLINA – ARTEFATOS E ARTIFÍCIOS)
Euler Sandeville Jr.
nova versão 16/06/20171
como citar:
SANDEVILLE JR., Euler. “O bisão na caverna (artefatos e artifícios)“. Ensino e Pesquisa, A Natureza e o Tempo (o Mundo), on line, São Paulo, 2017.
Bison antiquus, espécie da América do Norte. “Durante a época posterior Pleistoceno, entre 240 mil e 220 mil anos atrás, Bisonte-da-estepe, migraram da Sibéria para o Alasca. Esta espécie habitou partes do norte da América do Norte durante todo o restante do Pleistoceno. No entanto, Bison priscus foi substituído pelo Bisão-de-cornos-longos, Bison latifrons, e um pouco mais tarde por Bison antiquus. Os maiores B. latifrons parece ter morrido por cerca de 20.000 anos atrás. Em contraste, B. antiquus tornou-se cada vez mais abundante em partes da América do Norte a partir de 18.000 até cerca de 10.000 anos,[2] after which the species appears to have given rise to the living species, Bison bison, após o qual a espécie parece ter dado origem às espécies vivas, Bison bison” (disponível em pt.wikipedia.org/wiki/Bis%C3%A3o-antigo acesso em 07/05/2016). Por David Monniaux – self photo, CC BY-SA 3.0, commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=2939310 acesso em 07/03/2016.
Nesta seção entramos, pela imaginação estimulada por uma informação arduamente construída, na aurora nebulosa dos tempos. É um “lugar” sem respostas finais. A neblina através da qual procuramos entrever esse passado, imenso e longínquo, permanece obscurecendo nossos conhecimentos e certezas. Daí o título desta primeira seção, “A Aurora na Neblina”. É, como parece ser, poético.
Toda discussão sobre as origens tem em seu fundo o questionamento de como viemos a existir, e de como chegamos a ser como somos; no limite, coloca-se qual o sentido – ou ausência de sentido -, de nossa existência. Mas, aqui, reconhecendo essa dimensão das narrativas sobre a(s) origem(ns), o que se busca não é uma indagação ontológica ou existencial da nossa origem. Essa indagação deve ser construída a cada momento, não em um passado que se perdeu da memória senão em fragmentos tênues que nos chegam.
Portais da consciência. Criação de Euler Sandeville, 2011, montagem de fotos do autor . Gruta do Janelão: Parque Nacional Cavernas do Peruaçu, Januária, Itacarambi e São João das Missões, todas na região norte de Minas Gerais, 2000. Hospital Psiquiátrico do Juqueri, antigo alojamento da Colônia de Alienados, área de labor-terapia, Franco da Rocha, SP. Foto Euler Sandeville, 2004.
A explicação científica atual para a origem da existência estabelece uma epopeia de acasos de 13,3 bilhões de anos, onde em alguma localização imprecisa, muito mais recentemente, a 5 bilhões de anos, teria começado a se formar o que uma espécie por demais afeita às narrativas e explicações chama de “planeta Terra”. Ainda muito mais recentemente, algo entre 4 milhões e 250 mil anos teríamos o surgimento de um ser que consideramos singular, o gênero Homo.
Nessas distâncias infinitas, povoadas de restos de rochas, lascas de pedra, e artefatos rudimentares, entremeada ali e acolá por realizações elaboradíssimas, parece que nosso conhecimento científico sobre a origem do homem e sua organização social e cultural está envolto em uma bruma de suposições, em que nos movemos como que tateando. Isso vale até para períodos bem mais recentes como o Holoceno (a partir de 8.000 a.C. e nele a História a partir da escrita, como se convencionou definir), onde agora, praticamente ontem, imaginamos recortar um Antropoceno.
Em alguns casos, esse grau de suposição sobre os vestígios do passado é perturbador. Você olha um bisão pintado no fundo de uma caverna. Não sabe nada sobre ele, sobre quem o fez, em que circunstância, o que já tinha feito antes, de onde veio, como viviam. E conclui o que? Que é um bisão pintado por um homem a milhares de anos atrás e que não se faz a menor ideia de seu significado e explicação? Isso é insuficiente, talvez até frustrante, porque seu inesperado reaparecimento desse modo resultaria aleatório, ficaria sem resposta e sem possibilidade de significação. Sobretudo, se no local são encontradas lascas de pedra e se data o surpreendente acervo, após longas polêmicas de alguns anos, em milhares de anos.
Arte rupestre em Altamira, no município espanhol de Santillana del Mar, Cantábria. Considera-se que as pinturas e gravuras da caverna pertencem ao Paleolítico Superior, principalmente aos períodos Magdaleniano (entre 14 500 e 12 000 a.C.) e Solutreano (16 500 a.C.). O sítio não indica qualquer restrição ao uso da imagem. Disponível em en.museodealtamira.mcu.es/Prehistoria_y_Arte/la_cueva.html acesso em 07/06/2016.
O que está acontecendo é que torna-se necessário reinseri-lo no mundo, no nosso mundo das universidades e das narrativas, o que é também um modo de reinserir o nosso mundo em uma longa temporalidade, na qual a voz do desconhecido ecoa a nossa. De modo que, usando um conjunto de certezas estranhas ao fato e sem fundamentação efetiva, se não talvez na arriscada comparação com sociedades tidas como “primitivas”, e na perspectiva civilizatória de uma evolução biológica, urbana e técnica, chega-se à notável conclusão cabal sobre o que é (o que foi) esse bisão elaboradíssimo (sem paralelo nessas sociedades):
Escondidas nas entranhas da Terra, fora do alcance de eventuais intrusos, estas imagens devem ter obedecido a um propósito muito mais sério que o simples gosto de decorar. De facto, parece não haver dúvida de que foram executadas para servir um rito mágico destinado, talvez, a assegurar o êxito na caça. (…) Ao que parece o Homem do Paleolítico não estabelecia uma visão nítida entre as imagens e a realidade. Ao representar esses animais pretendia tê-los à sua mercê, e ao “matá-los” na imagem acreditava ter matado o sopro vital dos animais em si2.
Ou como notável historiador da cidade, Lewis Munford, observa na mesma linha, mas com mais imaginação, concedendo a esses antepassados distantes algum prazer:
Nesses antigos santuários paleolíticos, como nos primeiros túmulos e montes sepulcrais, encontramos, se existem, os primeiros indícios de vida cívica, provavelmente muito antes de poder sequer suspeitar-se de qualquer agrupamento permanente em aldeias. Não se tratava de um mero ajuntamento por ocasião do acasalamento, ou de um regresso provocado pela fome a uma fonte segura de água ou alimento, ou de um ocasional escambo, em determinado ponto convenientemente protegido por um tabu, de âmbar, sal, jade ou mesmo, talvez, instrumentos prontos. Ali no centro cerimonial verificava-se uma associação dedicada a uma vida mais abundante; não simplesmente um aumento de alimentos, mas um aumento do prazer social, graças a uma utilização mais completa da fantasia simbolizada e da arte, (…)3
Altamira, interior da galeria final. O sítio não indica qualquer restrição ao uso da imagem. Disponível em en.museodealtamira.mcu.es/Prehistoria_y_Arte/la_cueva.html acesso em 07/06/2016.
São ruins essas hipóteses? Não, claro que não. São tão boas ou ruins quanto qualquer outra, mas tornam-se verdade pela repetição, pelo silêncio incômodo em que se abrigam do nosso mundo ordenado. Estamos diante do desconcerto (que ainda é sedutor) de que nossa existência nos escapa à compreensão. E de que as explicações ainda estão permeadas de suposições. Tais como tenham sido, nós os perdemos. E, no entanto, são tão elaboradas e cativantes suas possibilidades para nós.
1. o que se pode fazer em 3 minutos de um dia
Para compreendermos da imensidão em que se perde essa aurora, e a intensidade da neblina em que a origem do homem mergulha, representar o tempo como uma escala, uma duração, pode ajudar. Quão longa foi essa aurora? Pensemos nas datações científicas, mesmo que não sejam consensuais. Mas adotemos uma duração temporal qualquer, apenas para dar uma ordem de grandeza.
Se pensarmos tão somente nos últimos 100.000 anos, que com maior evidência marcam a presença da espécie Homo sapiens, ainda que as diversas espécies sejam datadas muito anteriormente, teremos uma paradoxal noção de nossa brevidade. Não há qualquer significação nessa escolha de 100 mil anos, além de arredondar para menos e a um “número redondo” o Pleistoceno Superior. Paradoxal porque 100 mil anos são mais do que podemos imaginar, e ainda assim, reinserido-os na escala geológica por um lado, e por outro lado reinserindo nele o que chamamos de história, poderemos ter a dimensão assombrosa da brevidade de tudo o que julgamos conhecer.
Usando o artifício da “linha de tempo”, estabelecemos uma proporção entre 100.000 anos e a duração de um dia, para visualizar melhor, em uma escala proporcional a sua duração. Teríamos o período chamado como história, 6.000 anos, como apenas a última hora e meia desse intenso dia! Imagine se adotássemos o tempo geológico da Terra, sequer poderíamos representar o que chamamos de história.
Nessa hora e pouco (100.000:6.000) encontraríamos toda a chamada civilização, desde o Egito, Suméria, China, Astecas, Romanos europeus etc., até os dias de hoje. Todo nosso conhecimento histórico corresponderia à urgência de uma hora e meia. Quase todo o dia, 22 horas e meia, seriam ainda apenas uma parte da pré-história (apenas o finzinho do Paleolítico e do Pleistoceno!). Pensamos saber tanto sobre nossa história, ainda que com tamanhas incertezas e questões. Pensamos saber tanto sobre essa hora e meia porque se nos afigura mais nítida, e porque nos contentamos em remeter o que está na bruma do dia todo que não vivemos a uma ideia de primitivo, de tosco.
Mais, a chamada sociedade industrial e urbana, que observamos nos últimos dois séculos, não chegaria a excitados e excitantes 2 minutos. Ou seja, em 2 minutos (ou muito menos do que 2 minutos, pois poderíamos, ainda segundo a ciência, recuar a existência do ser humano a bem mais do que 100.000 anos), criamos meios de destruição, de assassínio em massa, de desigualdade, mas também de conhecimento da natureza, de cura, de locomoção e comunicação, sem qualquer paralelo com todos os nossos antepassados, ainda que tenham se esforçado muito em nos anteceder nessas notáveis evoluções das técnicas e conquistas da natureza.
Fala-se muito em uma destruição ou alteração substancial do bioma no neolítico (CROSBY, 19834; DEAN, 19965), mas nesses últimos 3 minutos fomos capazes de comprometer substancialmente o bioma do planeta como um todo, ou seja, nossa condição de vida, a natureza, cujos códigos agora começamos a devassar e a alterar, sem entender bem no que mexemos.
Nada indica que estejamos vivendo em um dia (na verdade, minutos ou segundos) mais luminoso do que nossos antepassados distantes, e que o domínio técnico e da natureza representem, de fato, um progresso. Nem que o acúmulo cognitivo atual seja efetivamente uma melhor compreensão do mundo. Ainda que possamos nos beneficiar dos avanços técnicos, certamente suportam também uma incômoda condição de barbárie, violência e injustiça, que em nada fica a dever nisso ao passado que olhamos como distante. Aprimoramos tanto os direitos quanto os meios de destruição, e mantemos a desigualdade, o desprezo moral e violento de uns pelos outros, a arrogância da ambição e a vaidade do poder comprometendo as condições de vida da quase totalidade dos humanos.
2. representação e verdade
Não poderíamos começar este estudo sobre a natureza, o mundo e o tempo a que se refere “A Natureza eo Tempo (o Mundo)”, sem nos localizarmos na atual cosmogonia em que, como sociedade, pensamos existir. A representação de mundo que socialmente engendramos e partilhamos, que nos é afirmada como verdade, merece ser discutida no que é, no que a mobiliza e em quais conhecimentos mobiliza: que visões de mundo são assim mediadas, e a que direcionam? Essas explicações modernas (contemporâneas) são uma construção de e do mundo e uma visão da natureza e do tempo. Sem dúvida, uma sedutora e importante investigação científica, além de uma evidente e persistente necessidade em situarmo-nos além de nós mesmos.
Ainda assim, escapa também com certa facilidade a compreensão de que a visão científica é também uma explicação. O que significa afirmar que vai além do fato científico e constrói uma versão do mundo, e toda visão de mundo abriga e escolhe entre valores em conflito. Mais, a narrativa científica das origens é um esforço de fundação da própria natureza e autoridade da ciência na interpretação e definição contemporânea do mundo, antes demarcado pela fé ou, mais propriamente ainda que pela fé, pela religião.
A explicação científica não deixa de ser uma fundação (invenção) do mundo. Trata-se do estabelecimento de um mundo coerente com os pressupostos da modernidade, e da ciência. Ou seja, um mundo à imagem da sociedade laica que surge a partir dos séculos XVIII e XIX. Sem ir muito longe, são valores típicos da modernidade e da economia burguesa a noção de desenvolvimento, de ruptura com o passado, e de oportunidade e competição, interdependência sistêmica. O processo de um acúmulo de conhecimentos e capacidades técnicas e conceituais em sua investigação (construção) está no cerne da razão de ser da ciência, tanto quanto seu apego às evidências dos fenômenos como base da verdade, que torna-se assim também cumulativa em sua constituição.
A construção de narrativas científicas remetem o entendimento das origens às bases de um mundo que deve ser visto pelas evidências materiais, e por sistemas de organização, que são muito próprios da ciência. E da economia burguesa. Sua difusão desde a escola torna para nós natural algo que é construção, cultura e ideologia, e não apenas ciência. Subsidiariamente, insere-se em um contexto de construção de um mundo laico, desautorizando possibilidades que conflitem com suas formas de produção, organização e redação.
3. natureza, mundo, tempo…
O debate permanece aberto. A mim não interessa tanto o acerto ou não das ideias em conflito, mas que visão de mundo procuram estabelecer. Talvez jamais venhamos a conhecer cabalmente os mistérios de nossa origem e natureza, embora sejamos, obviamente, como se vê, capazes de perscrutá-la.
De modo que olhar para as origens, mais do que desvendar efetivamente uma verdade oculta, é revelar como nos concebemos no mundo. Todos os recuos no tempo citados neste ensaio e outros deste sítio, mais do que elucidar a questão, colocam em questão o que somos, como nos vemos e nos posicionamos na natureza, no cosmos e no mundo, no tempo e além dele.
O próprio título desta seção, “A Aurora na Neblina”, de certo modo poderia corroborar equivocadamente a noção de uma origem que progride, porque a ideia de aurora sugere a muitos um gradual preâmbulo do dia. Metáfora, e como toda metáfora, sua validade é dada em seu contexto e intencionalidade. Aqui não se trata disso, é outra a metáfora, apenas se vê de forma poética uma origem que se perde em uma bruma de mistérios: aurora e neblina. Ainda que possa ser a maior parte do dia, como vimos. E que resuma no desconhecido a maior duração, senão sua quase totalidade, do tempo humano.
Aliás, devemos notar que as construções tradicionais são também fortemente poéticas e não descrição de fenômenos. Essa longa aurora, para a ciência, que não se pretende poética, funda-se ainda no entendimento de que a complexidade organizativa é atingida com as sociedades urbanizadas, das quais nos sentimos herdeiros.
Também, por essa razão, afigura-se sedutor para mim, mais do que saber se tal ou qual datação está correta, entender as representações de mundo e a que direcionam as narrativas. Pois, mais do que verdade, trata-se de narrativas, de intencionalidades. Não me cabe resolver essas questões dos indícios do que aconteceu, e deixo claro que sou muito grato aos que se dedicam a isso. Meu exercício intelectual é discernir, e colocar em indagação, o campo significativo e existencial em que nos movemos e suas implicações, trabalho já árduo o suficiente.
Que não fiquem dúvidas, a pesquisa é sobre o mundo (o que inclui o tempo e a natureza, e no tempo e na natureza é incluso) como representação, em que se agarram e a que apontam as diversas representações em sua constituição dinâmica, que perspectivas abrem, e quais fecham, que implicações constroem.
Sim, eu sei, um campo que permanecerá aberto. Mas não deveria permanecer assim, mesmo com as posições que vamos assumindo e as certezas que nos movem? Ou, qual de nós, teria o direito – humano – de subjugar o outro? Qual de nós é testemunha dessas origens, que relate o sentido final do bisão na caverna? Mas não é isso o que temos feito tão bem, desde essa aurora imersa em uma densa neblina, até hoje?
“As Nações Unidas estimam que aproximadamente 224.5 mil pessoas atravessaram o Mediterrâneo rumo à Europa. As ilhas gregas foram o ponto de chegada para quase 124.2 mil refugiados e migrantes, a Itália para 98.5 mil, Espanha para 1.7 mil e Malta recebeu 94 pessoas, segundo os dados oficiais destes países. (…) A Síria é o ponto de partida e nacionalidade de dois terços dos refugiados que conseguiram chegar à Grécia. Segue-se o Afeganistão (20%) e o Iraque (5%)”. Grécia é o primeiro destino dos refugiados que cruzam o Mediterrâneo [7 Agosto, 2015] Disponível em infogrecia.net/2015/08/grecia-e-o-primeiro-destino-dos-refugiados-que-cruzam-o-mediterraneo/ acesso em 15/02/2016Portais da consciência. Criação de Euler Sandeville, 2011, montagem de fotos do autor . Gruta do Janelão: Parque Nacional Cavernas do Peruaçu, Januária, Itacarambi e São João das Missões, todas na região norte de Minas Gerais, 2000. Hospital Psiquiátrico do Juqueri, antigo alojamento da Colônia de Alienados, área de labor-terapia, Franco da Rocha, SP. Foto Euler Sandeville, 2004.
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NOTAS
1 Versão inicial 10/02/2016 a 06/03/2016. Atualização: 07/03/2017. Revisão radical em 16/06/2017, podendo ser considerado um novo texto. O texto original gerou este e mais dois artigos.
2 JANSON, H. W. História da Arte. [1986] Trad. J. A. Ferreira de Almeida e maria Manuela Rocheta Santos, colab Jacinta maria Matos. 5a. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 27.
3 MUNFORD, Lewis. A cidade na história. Suas origens, transformações e perspectivas. [1961] Trad. Neil R. da Silva. 2a ed. São Paulo: Martins Fontes, 1982, pg. 14.
4 CROSBY, Alfred W. Imperialismo ecológico. A expansão biológica da Europa: 900-1900. São Paulo, Companhia das Letras, 1993.
5 DEAN, Warren. A ferro e fogo : a história e a devastação da mata atlântica brasileira. Tradução Cid Knipel Moreira. São Paulo: Companhia das Letras, 1996
como citar:
SANDEVILLE JR., Euler. “O bisão na caverna (artefatos e artifícios)“. Ensino e Pesquisa, A Natureza e o Tempo (o Mundo), on line, São Paulo, 2017.
[para citar este artigo conforme normas acadêmicas, copie e cole a referência acima (atualize dia, mês, ano da visita ao sítio)]
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Estela de Narâm-Sîn, rei de Akkad (reinado de 2190 – 2154 aC.), celebrando sua vitória contra os Lullubi de Zagros. Calcário, c. 2250 aC Trazido de Sippar para Susa entre outros despojos de guerra no século XII aC. H. 2 m x W. 1,5 m. Escavado por Jacques de Morgan, 1898. Departamento de Antiguidades Orientais, Richelieu, térreo, sala 2. Disponível em pt.wikipedia.org/wiki/Sarg%C3%A3o_da_Ac%C3%A1dia#/media/File:Stele_Naram_Sim_Louvre_Sb4.jpgFolha, detalhe. Foto de Euler Sandeville, 2009.
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[ 800 d.C.a 961 d.C. ] [ 962 d.C. a 1054 c. 1072 d.C. ]
“O Império Romano e os seus vizinhos no século II. “. Disponível em pt.wikipedia.org/wiki/Guerras_romano-persas.html acesso em 15;10;2019 sob licença Creative Commons.
“Mapa do Império Bizantino e dos territórios romanos remanescentes em 477. No ano anterior o Império Romano do Ocidente, já fragmentado, findou com a conquista da península itálica pelo oficial romano de origem bárbara Odoacro”. Disponível em pt.wikipedia.org/wiki/Guerras_romano-persas.html acesso em 15;10;2019 sob licença Creative Commons.
“Califado Omíada (661-750) no seu auge, ca. 750”. Disponível em pt.wikipedia.org/wiki/Califado_Om%C3%ADada.html acesso em 15;10;2019 sob licença Creative Commons.
Folha, detalhe. Foto de Euler Sandeville, 2009.
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OS TEMPOS E OS MUNDOS: SOBRE A ANTIGUIDADE DOS MUNDOS
A LONGA ANTIGUIDADE DOS MUNDOS IV MUNDUS NOVUS (1055 a 1749) A Longa Idade Média e a nova antiguidade
A invenção da Europa. Do sobrenatural à natureza.
O globo terrestre.
Euler Sandeville Jr.
Pesquisar é indagar a existência.
φύσις κόσμος αίων κρόνος καιρός
este mundo está em guerra, embora muitos de nós desejem a paz
O título da seção é inspirado na carta de Américo Vespúcio, Mundus Novus. Carta a Lorenzo di Piefrancesco dei Medici. [1]
1260. Raiz Jesse com Maria e Criança; Miniatura do Scherenberg Psalter, manuscrito em pergaminho, 158 folhas, 18,5 x 13 cm; Estrasburgo, c. 1260. Badische Landesbibliothek, Cod. St. Peter perg. 139, folha 7v. Disponível em pt.wikipedia.org/wiki/Árvore_de_Jessé
SANDEVILLE JR., Euler. A reta e a curva, a estética da paisagem? Paisagem e Ambiente, São Paulo, v. 8, p. 147-173, 1996. Disponível em http://www.revistas.usp.br/paam/article/view/133829/129696↑ acesso em 18 de fevereiro de 2018. [Tema transversal].
Figura:Juan Valverde, anatomista médico espanhol. Historia de la composición del cuerpo humano (História da composição do corpo humano), com 42 gravuras de cobre atribuídas a Gaspar Becerra e Nicolas Beatrizet, cerca de 1556, Espanha
NOTAS
[1] VESPÚCIO, Américo. Mundus Novus. Carta a Lorenzo di Piefrancesco dei Medici. In BUENO, Eduardo (org.). Novo Mundo. As cartas que batizaram a América. Introdução e notas Eduardo Bueno. Tradução das cartas João Angelo Oliva, Janaina Amado Figueiredo e Luís Carlos Figueiredo. São Paulo, Editora Planeta do Brasil, 2003, pg 33 a 61.
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ENXERGAR O FUNDO DO LAGO PARA VER DURANTE A TEMPESTADE…
(sobre criacionismo e evolucionismo, disputas sobre as origens e o presente) Euler Sandeville Jr. Junho de 2017 [1 *notas no fim da página]
Lago no Caraça, MG, foto Euler Sandeville Jr. ago, 2010.
Qual é a origem de nosso mundo e como é a origem dos homens nesse mundo? Essa pergunta tem recebido ao longo de milhares de anos inúmeras interpretações, pode-se dizer mesmo que em todas as épocas e lugares cada sociedade, cada povo, procurou em algum momento responder a essa pergunta. Mesopotâmios, gregos, egípcios na Antiguidade desenvolveram, ao longo de sua história, por vezes mais de uma narrativa riquíssima procurando respondê-la. De certo modo, as narrativas gregas se universalizaram, embora retiradas do campo das crenças para o das mitologias e do psiquismo.
Também os hebreus nos legaram um relato milenar. Ao contrário daqueles de povos vizinhos, este também veio a se universalizar, porém mantendo sua dimensão do sagrado. Sua base é a criação de todas as coisas por Deus, e sua intervenção na história. Sua difusão foi favorecida por fatores históricos externos aos hebreus, com a origem de uma sociedade globalizada perseguida por Alexandre e levada a cabo pelos Romanos, depois com a universalização da igreja católica. Universalização nos termos do que depois chamaríamos de sociedade ocidental e mais recentemente de globalização.
Nossa sociedade contemporânea, herdeira dessas e de muitas outras tradições nesse longo processo, a partir do século XVIII e XIX, remetendo o sagrado ao campo da mitologia e da subjetividade, gradualmente assumiu uma explicação secular para as origens da Terra, do Universo, do homem e das demais espécies, basicamente evolucionista.
Em decorrência, em nossa sociedade disputam duas cosmovisões diametrais, a criacionista e a evolucionista. Essas tendências, que não são nada homogêneas como a designação pode favorecer entender, se referem à complexidade das crenças, religiões e dos ateísmos contemporâneos. O tema das origens do mundo, da vida e do homem permanece polarizado (em nossa sociedade) entre elas. Atualmente, a única forma de não estar assim é recusar, senão omitir ou reprimir, um dos polos em tensão.
Não pense o leitor, nem por um momento, que esta é uma questão do passado, ou que já foi resolvida pelos avanços da ciência desde o século XIX. Muito longe disso. O como devemos abordar e pensar a narrativa de nossas origens permanece, e tende a permanecer por longo tempo, exceto se estabelecido o contrário pela força ou intimidação, em um campo aberto. Para além da disputa da verdade sobre as origens, trata-se de disputas sobre a natureza e expectativas do presente.
Não pense, portanto, que essa polarização se esgote no campo da gênese do mundo físico e das espécies. Ao contrário, para além das tensões entre criacionismo e evolucionismo do mundo físico, com toda a gama de posições entre os extremos, o que essas narrativas colocam em questão é muito mais profundo: é a natureza e significação da consciência, da técnica, das formas de convívio social, das possibilidades da linguagem, da sensibilidade e da cognição, da fundamentação da ética e da transformação do mundo em recurso (e em decorrência da existência).
A crítica que se faz, há mais de um século, é que as narrativas tradicionais, como um todo, são míticas, transcendentes, e portanto basicamente subjetivas. E podem sê-lo sem dúvida, sem que com isso deixem de ser também acontecimentos históricos e memória (e estas duas não são a mesma) e, sobretudo, o que lhes confere sentido, experiência real do sagrado (e não apenas mito).
Obviamente, considerando seus pontos comuns e suas profundas divergências, as diversas cosmogonias não poderiam ser todas igualmente verdade. E para muitas sociedades antigas, não era a verdade o que estava em questão, mas o favor das forças naturais e sociais a partir de entidades sobrenaturais. Isso permitia tanto a subjugação de uma divindade sobre outra, conforme os próprios relatos já previam em seu âmbito, ou a coexistência entre elas.
Mas há um fator ainda essencial, que a noção moderna de divindade, sendo cética, dificulta perceber. A verdade não era a verdade do mundo físico por si só, deveria incluir para muitas sociedades antigas o sentido da existência no universo, um sentido que é tão moral e estético quanto racional, em um universo e natureza que não se esgotam nem se significam em si mesmos. O que foi peculiar aos hebreus foi reconhecer um único Deus verdadeiro, por sua revelação na história e na vida das pessoas a quem se revela.
Obviamente, essa é uma condição impensável para o mundo contemporâneo. No entanto, esse contemporâneo é ele mesmo uma construção. Não existiu sempre como tal, não se apresentou sempre como verdade evidente. A crítica que o racionalismo materialista desde o século XVIII e XIX impõe resulta em mudar os paradigmas de verificação e em remeter os antigos ao domínio do mítico. Por fim, entendendo que o recurso ao mítico decorre do medo e da ignorância diante de uma natureza que mais do que objetiva é assombrosa.
Esse engenhoso artifício explicativo tornou-se portanto a verdade de uma época muito recente. Mas isso não quer dizer que o campo imaginativo foi banido nessa aventura pela materialidade do mundo contemporâneo. Mesmo que negado por uma busca radical de objetividade e fisicalidade, persiste um campo imaginativo e representacional em construção que sustenta a articulação explanativa das provas documentais e materiais (lato senso) da ciência, como ossadas e restos de objetos técnicos em camadas geológicas (se o que nos ocupa é o homem) e, mais recentemente, os sequenciamentos genéticos.
A base do conhecimento atual sobre as origens cruza uma série de campos investigativos da ciência contemporânea, de evidências materiais e de hipóteses, das formas consideradas válidas para interpretá-los e pressupostos epistemológicos já mencionados. De modo que se essa objetividade pretendida traz evidentes resultados na manipulação do mundo, é essa condição mesma indício de campos imaginários e ideológicos em construção na construção desse olhar, que estabelecidos como válidos, organizam o mesmo olhar. Isto é, o que se vê, o que se escolhe, de onde se vê, em qual ponto é válido situar-se.
De um modo geral, a imagem difundida na ciência tem uma estrutura conceitual e representacional para além da questão do método: um começo aleatório que promove evolução (progresso, na formulação inicial desse pensamento) e contínua diferenciação e complexificação. O que, mais do que verdades, coloca em evidência a convergência histórica das teorias contemporâneas em seu campo social de constituição.
Isso se aplica às teorias da origem do Universo (o “Big Bang” de um ponto primordial cuja natureza ou processos desencadeadores não podem ser propostos) ou da vida, demandando e propondo tempos cósmicos e geológicos que se dilatam. Da mesma forma é então vista a origem do homem. Essa origem geralmente situa-se no paleolítico, que é datado entre 3 ou 2 milhões de anos atrás e 10.000 a. C., geralmente tendo como um marco de entre 50.000 e 30.000 anos atrás para que se tenha firmado a espécie Homo sapiens como espécie dominante. Nesse intercurso biológico, os artefatos e o domínio técnico são colocados a pari passu. O período seguinte, denominado neolítico, integra os relatos das origens por situar-se na pré-história, com testemunhos arqueológicos de grandes aldeias, indicando as primeiras cidades conhecidas.
Enquanto escrevia este artigo, foi divulgada a notícia de que a espécie Homo sapiens pode ser 100.000 anos mais antiga do que se pensava até então. Os restos de ossadas descobertas em 2004 foram datadas pelo método da termoluminescência [2], conforme notícia publicada na Exame de 07 de junho de 2017:
Antes da descoberta no sítio chamado Jebel Irhoud, localizado entre Marrakech e o litoral marroquino do Oceano Atlântico, os fósseis de Homo Sapiens mais antigos que a ciência conhecia eram de um sítio etíope chamado Omo Kibish–que se estima ter 195 mil anos. “Esta descoberta representa a origem da nossa espécie, trata-se do Homo sapiens mais velho já encontrado na África e em qualquer outro lugar”, explicou o francês Jean-Jacques Hublin, coautor da pesquisa e diretor do Departamento de Evolução Humana do Instituto Max Planck em Leipzig, na Alemanha [3].
Também o Jornal da USP deu atenção ao fato, relativizando um pouco a afirmação acima:
Em entrevista à Rádio USP, o professor Walter Neves, coordenador do Laboratório de Estudos Evolutivos Humanos do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo, garante que não estamos diante de nenhuma revolução da história humana. Segundo ele, esses fósseis encontrados no Marrocos são conhecidos desde os anos 1960, mas careciam de uma datação mais exata. Não se podia afirmar a que espécies pertenciam, pois apresentavam características do Homo sapiens mas também as de uma espécie anterior, o Homo heidelbergensis. O cientista explica que os crânios de Homo sapiens mais antigos datam de 200 mil anos atrás e que foram encontrados na Etiópia. Faltava, no entanto, a ligação entre os Homo heidelbergensis e os Homo sapiens. De modo que os fósseis encontrados agora no Marrocos, de cerca de 350 mil anos, se encaixam na transição evolutiva entre os heidelbergensis e os sapiens. “Então, a gente pode dizer que esses fósseis estão no lugar certo, com a morfologia certa e com a datação certa para servir de intermediários entre aquelas duas espécies”, diz o professor. Trata-se de um grande avanço, mas não se pode confundir essa descoberta a ponto de dizer que esses fósseis são os primeiros representantes da nossa espécie. “É uma descoberta de grande relevância, que está sendo vendida na mídia como se o Homo sapiens datasse de 350 mil anos, mas isso não é verdade.” [4]
Jebel Irhoud 1. Homo Sapiens, approx. 160,000 yrs old, Taken at the David H. Koch Hall of Human Origins at the Smithsonian Natural History Museum. Disponível em en.wikipedia.org/wiki/Jebel_Irhoud acesso em 20 de junho de 2017.The Jebel Irhoud site in Morocco. Credit Shannon McPherron/Max Planck Institute for Evolutionary Anthropology. Matéria de Carl Zimmer com o título Oldest Fossils of Homo Sapiens Found in Morocco, Altering History of Our Species, de junho de 2017. O local não indica restrição de uso da imagem. Disponível em nytimes.com/2017/06/07/science/human-fossils-morocco.html acesso em 21 de junho de 2017.
Não há dúvida, o relato bíblico é totalmente distinto. Nem se poderia esperar que um relato como o da Bíblia (judaica e depois cristã) pretendesse apresentar um enunciado científico da criação. Até essa mera suposição seria uma irracionalidade. O que não implica que não seja, em sua essência, uma descrição dos acontecimentos. Vejamos qual sua proposta.
Reconhecendo uma condição informe inicial, cuja natureza também não é postulada, para além dela há Deus, que através de um ato de vontade criativa configura o universo conhecido e vivenciado, gradualmente. Mas ao contrário da teoria científica que postula um desdobramento da vida de formas primitivas e mínimas a um esgalhamento de diversificação e complexidade, aqui a origem da vida, embora posta em um sequenciamento, já vê de pronto uma diversidade coexistente de espécies e formas de vida a cada etapa, decorrente de um ato criador.
Da mesma forma a origem do homem, detalhada no segundo capítulo do Livro do Gênesis. Após a expulsão do jardim original, até o capítulo 12, os homens dispersam-se sobre a Terra, segundo duas ou três linhagens pelo menos. Adão, que vivia da coleta e com a expulsão do jardim vive da agricultura, vê seus descendentes dedicarem-se ao pastoreio e à agricultura, à construção de cidades, sendo pastores de gado, músicos e artífices de cobre e ferro. Estas as primeiras ocupações mencionadas. No entanto, a atenção aos artefatos não é o fulcro da história proposta, é um registro que não indica evolução mas afastamento de Deus, sobretudo, o que é estranho para nossa sociedade, não é na evolução técnica em si que há a definição da condição humana.
Essas duas narrativas podem ser subdivididas de vários modos, e são bem mais complexas do que é possível traduzir aqui, de modo resumido a pequenos parágrafos, que impedem mais do que indicar sumariamente a estrutura do relato. No entanto, de certo modo, partindo de concepções que mais do que opostas são de fato completamente distintas, ambas apresentam uma noção de tempo (não a mesma), e em ambas esse tempo está em mudança (não necessariamente evolução).
Como a ciência surge em um ambiente fortemente religioso, é compreensível que desde o século XVII e seguintes se intente um diálogo cada vez mais difícil entre ciência e religião, como na dita Idade Média se intentou em relação aos conhecimentos do mundo advindos da Antiguidade.
Com a afirmação da ciência e a distinção das esferas pública e privada, da subjetividade, da riqueza, da arte e da técnica, da ética e da produção, do conhecimento e da crença e assim por diante, a partir de meados do XVIII e principalmente do XIX a cisão entre religião e ciência é constituinte da condição contemporânea. Mas veja, a cisão não é apenas entre ciência e religião, é entre vários campos da experiência humana, e logo internamente à ciência, às instituições e à produção. Cisão que obviamente não é, nem pode ser plena, e inúmeros modos de mediação se fazem necessários.
Em decorrência desse afastamento, e das necessidades de mediação, muitos esforços foram e continuam sendo feitos para trazer a narrativa bíblica para uma convergência ou pelo menos um paralelo com a narrativa contemporânea. Pelo menos em um ponto as duas narrativas parecem concordar, a origem do homem em um mundo e uma biota já formados, mesmo que sujeitos a mudanças em ambas, embora não as mesmas.
O que coloca para ambas uma radical condição para a existência humana, e de relevantes consequências: a brevidade de nossa existência no mundo. No Gênesis, o homem é a última das criações de Deus no sexto dia, e seus acontecimentos, se tomados literalmente, nos situariam nos últimos momentos antes do entardecer do sexto dia. A origem pouco clara ou imprecisa, e progressiva dos homens da ciência, como vimos acima durando centenas de milhares de anos (e no limite de alguns milhões), também ela parece ocorrer (com uma liberdade metafórica minha) em um “jardim” (talvez uma savana), e certamente situa-se nos últimos momentos do tempo geológico do mundo até aqui.
A garganta de Olduvai. “Olduvaiense é o termo usado em arqueologia para se referir às primeiras indústrias líticas dos hominídeos durante o período Paleolítico Inferior, na África. A denominação refere ao sítio arqueológico mais importantes de tais indústrias: a Garganta de Olduvai, na Tanzânia. A descoberta científica, pelo outro lado, deve-se ao trabalho de Louis Leakey na década de 1930 e de 1940” Disponível em commons.wikimedia.org/wiki/File%3AOldupai_gorge.jpg Atribuição By Ingvar ([1]) [CC BY-SA 1.0 (creativecommons.org/licenses/by-sa/1.0)], via Wikimedia Commons. This file is licensed under the Creative Commons Attribution-Share Alike 1.0 Generic license.
Pequena semelhança na verdade, mais o divertimento de propô-la, uma vez que nem o homem foi, para a ciência, criado por Deus, nem tão pouco o jardim. A condição contemporânea do homem é curiosa, esvaziado da dignidade de uma criação por Deus, tanto situa-se no acaso sem sentido que o iguala como espécie, porque toda sua dimensão é física, quanto é apresentado no termo dessa evolução, ao lado da flora e fauna modernas. Mas termo, e portanto ápice, em um sentido muito próprio. Sem significado na sua existência (na medida em que é aleatória, ocasional), ao contrário de outras espécies com as quais teria coevoluído, é capaz de desvendar os processos da natureza e subjugá-la pela técnica à sua vontade, ao seu interesse biológico e social.
Ou seja, a partir do século XIX, com a ausência de propósito, gradualmente não há limites para a técnica e a economia. Ainda que o conhecimento para tanto seja um acúmulo gradual, progressivo e não linear. Técnica que não é apenas manipulação da natureza, mas de um homem que sendo plenamente natureza é ele também plenamente objeto da finalidade técnica e econômica.
Podemos ver isso de outra forma ainda. A noção de eras se repete. Os tempos de Hesíodo [6] são 5 eras revelando de certo modo ciclos que se sucedem sem se repetir, mas encerrando-se com sua extinção. Em Agostinho de Hipona encontramos a narrativa bíblica, a história desde a criação, relida em 6 eras (como eram seis os dias da criação), que revelariam diferentes formas de diálogo entre a existência e a eternidade (ainda que a Bíblia não as proponha de fato). Na Geologia encontramos ao menos 4 éons, com inúmeras subdivisões, configurando ciclos de desenvolvimento específicos (pontuado por extinções) dentro de um contínuo temporal que parte do mais simples para o mais diverso e complexo.
No relato bíblico do Gênesis, a vida localiza-se em tempos bem mais recentes, no quinto e no sexto dias (embora as plantas já houvessem sido criadas no terceiro dia), e o homem nos últimos momentos dessa epopeia de criação ou de evolução. As eras geológicas representam um imensurável alargamento do tempo para além da escala humana. O Fanerozoico, representado como uma “explosão da vida”, teria durado apenas (!) 500 milhões de anos enquanto o Arqueano mais de 1 bilhão e o Proterozoico 2 bilhões de anos. Os hominídeos, entretanto, a coisa de apenas 4 milhões de anos, os humanos a coisa de duas centenas de milhares de anos somente. Daí em diante se noticia apenas extinção.
Não deixa de ser tentador, e sobretudo divertido, dividir os 3,85 bilhões de anos que marcam os éons geológicos do Arqueano até hoje por 641 milhões de anos (apenas 100 milhões a mais do que o Fanerozoico) e teríamos também 6 períodos. Divertido sem dúvida pela temperatura das questões, mas desnecessário, na verdade não adianta buscar muitas semelhanças, não são intercambiáveis esses períodos, não buscam as mesmas coisas, não esclarecem os mesmos problemas.
Não me refiro a uma incompatibilidade intransponível entre a ciência, a religião e a fé; apenas não devemos confundir os seus significados, nem inferir que sejam as mesmas coisas, ou que tratem e busquem das mesmas coisas. Vamos supor que haja pontos de contato possíveis. De qualquer forma, se os estabelecermos, devemos saber o quão tênue é o terreno em que nos movemos: tudo irá mudar, e as diferenças fundamentais (embora claramente existam) não estão nas narrativas em si, mas no significado existencial que nos trazem.
Não se pode, nem se deve, no meu entendimento, estabelecer correspondência entre o significado da Bíblia e o da ciência. Não que não se possa discuti-los e debatê-los (respeitosamente de preferência), mas não há razão de necessidade ou possibilidade de correspondência no atual estágio do que sabemos e do que não sabemos. Não vai aqui também qualquer interdição a que se o faça.
Não estou, de modo algum, dizendo que não se façam debates, pelo contrário, devem ser feitos; o esforço e busca de conhecimento não deve ser limitado por interdições arbitrárias, embora deva ser parametrizado internamente ou nas relações entre as possibilidades de explicação, por razões éticas. Mas também aqui há um problema, uma proposição que a ciência tem por mítica, tem sua ética em uma ordem da natureza que ultrapassa o homem: a ordem natural existe em uma ordem cósmica, decorrente de intencionalidade divina. Uma proposição que a religião teria por materialista, a da ciência, teria sua ética na matéria, incapaz de fornecê-la, ficando portanto em parte livre desse constrangimento, e em parte sujeita à relatividade instável da conveniência social. Façam-se os debates, mas não como forma de destruição, de vitória, de conquista, porque o que está em jogo é sutil, profundo, significativo.
Observo apenas que uma dimensão essencial pode estar passando despercebida, como alguém que deseja enxergar o fundo do lago durante a tempestade, e talvez até enxugá-lo para expor sua evidência. Isso seria não perceber que a importância de ambos não se resume ao factual, porque buscam coisas distintas mesmo quando tratam das mesmas coisas; e ainda que houvesse uma correspondência narrativa possível entre elas, não seriam a mesma. O que estou questionando aqui não é a verdade histórica da Bíblia ou da ciência, o debate existe, como estou reconhecendo. Mas, como estudioso, interessa-me a visão de mundo que traduzem, o que significam, o que querem fazer significar.
A existência de espécies e “subespécies” no gênero Homo, com variedades extintas, e a duração dos acontecimentos, não é em si o que coloca em oposição fé e ciência. Aliás, seria até possível se considerar coincidências parciais, embora não se possa datar ou correlacionar o relato bíblico e as hipóteses científicas e, sobretudo, mesmo que não houvesse uma interdição em grande medida lógica, em grande media passional, não se possa atualmente conciliar criação e evolução.
Refiro-me, por exemplo, a uma hipótese de que, por um evento cataclísmico, teria havido na espécie Homo sapiens uma drástica redução da população, a algo entre menos de 1.000 ou 10.000 casais [7], com consequente perda genética, que os estudos dessa área parecem sugerir. A teoria da Catástrofe de Toba (proposta em 1998 por Stanley H. Ambrose), teria ocorrido a 70.000 ou 80.000 anos atrás, e explicaria a variação genética observada, presente também em outros animais.
Desse evento teriam sobrevivido apenas o Homo neanderthalensis e o Homo sapiens que, normalmente se considera, teriam coexistido até 30.000 anos atrás, existindo ainda evidências de espécies de Homo erectus e Homo floresiensis. O relato bíblico também indica uma redução drástica, embora bem mais drástica, da diversidade e das linhagens humanas descritas no Gênesis, com redução a 8 pessoas, ou quatro casais. Em comum, por vias antagônicas, a teoria e a tradição apontam para uma redução radical da população humana em dado momento.
Que fique claro, obviamente não estou aqui a procurar justificar uma coisa com a outra, e não me interessa a possibilidade ou não de dialogarem, pois como disse não vejo necessidade, muito menos a possibilidade presentemente de que o façam. O que as afasta não são tanto essas apresentações, por hora irreconciliáveis. É o ponto em que o homem existe como tal, e o modo como isso veio a acontecer, ou seja, se resume-se em bios, ou se ocorre em uma relação entre a natureza e um mundo espiritual.
Visam, portanto, fazendo suas escolhas, a coisas diferentes, falam de coisas diferentes, pouco têm em comum mesmo quando têm algo em comum e não caminham para o mesmo lugar desde pelo menos o século XVIII. No entanto, um problema de verdade ainda assim persiste, e é fundamental. Para não dizer crítico. Intelectualmente, se pensarmos que são representações do mundo, abrem-nos um campo interessantíssimo de debate e significação sobre a própria existência.
Águas. Foto de Euler Sandeville Jr., 2010. Há um fundo no lago, e podemos vislumbrar um pouco através da transparência e difração da luz na água, mas não podemos devassar sua natureza em meio à tempestade.
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NOTAS
1 Este artigo foi desdobrado do artigo “O bisão na caverna (a aurora na neblina – artefatos e artifícios)”, quando de sua revisão publicada em junho de 2017, gerando um artigo inteiramente novo e retirando daquele este conteúdo, modificando a primeira versão daquele de fevereiro de 2016.
2 “A termoluminescência é uma técnica de datação baseada no facto de um mineral cristalino (quartzo, feldspato, etc.) aquecido a 400 °C emitir luz, e de a quantidade de luz emitida ser função do tempo durante o qual esse material esteve submetido a uma irradiação produzida por elementos radioactivos naturais, presentes no seu meio ambiente, e, em menor escala, aos raios cósmicos (solares ou galácticos). Esta técnica é utilizável em determinadas rochas e sobre terras cozidas ou cerâmicas, já que tanto umas como outras contêm quartzo, feldspato, etc. No caso das cerâmicas. a cozedura de fabrico apagou todos os vestígios das irradiações anteriores, mas a sua datação por termoluminescência só pode fazer-se depois de medida a radioactividade natural do mineral utilizado como matéria-prima, bem como a radioactividade do solo no qual esteve enterrado o objecto estudado. A termoluminescência apresenta a grande vantagem de poder ser medida a partir de um fragmento minúsculo (50 miligramas). Permite datar rochas ou objectos que tenham uma idade compreendida entre a época actual e algumas centenas de milhares de anos”. Disponível em histheory.tripod.com/methodos.html acesso em 21/06/2017.
3 Disponível em exame.abril.com.br/ciencia/homo-sapiens-e-100-mil-anos-mais-velho-do-que-se-pensava/ acesso em 15/06/2017.
4 Disponível em jornal.usp.br/atualidades/seria-o-homo-sapiens-mais-antigo-do-que-se-pensava/ acesso em 12/06/2017. A matéria atribui a divulgação da notícia em número da coneiturada revista nature de 08/06/2017.
5 “A garganta de Olduvai constitui um dos lugares mais importantes no leste da África em relação a sítios paleontológicos e arqueológicos pré-históricos olduvaienses e acheulenses. Os barrancos deste canhão também são conhecidos oficiosamente com o apelido de “berço da humanidade”. (…) O nível com restos arqueológicos mais antigo, conhecido como Camada I (Bed I), de cerca de 50 m de potência, registra assentamentos com uma indústria lítica muito primitiva, desenvolvida com lascas fabricadas com basalto e quartzo. Dado que este tipo de ferramentas foram descobertas pela primeira vez neste local, a etapa cultural na que se produziram foi denominada Olduvaiense por Mary Leakey. Os ossos achados nesta camada são de hominídeos primitivos como Paranthropus boisei e dos primeiros espécimes encontrados de Homo habilis. O teto da unidade foi datado em 1,8 Ma. Acima desta, encontra-se a Camada II, de 15 a 20 m de potência, que registra uma redução gradual do primitivo lago e importante atividade tectônica datada por volta de 1,6 Ma. As ferramentas de pedra começam a ser substituídas por bifaces mais sofisticados da indústria acheulense, que coexiste com um Olduvaiense evoluído. O final desta camada poderia ser datado por volta de 1,2 Ma. O conjunto das Camadas III e IV não supera os 11 m de espessura, e correspondem a sedimentos aluviais, já desaparecido o lago dos episódios precedentes. Seguem-se encontrado ferramentas acheulenses e olduvaienses evoluídas, atribuídas a Homo ergaster. A datação do teto da Camada IV não é bem definido, mas dados paleomagnéticos dos níveis posteriores indicam uma idade anterior a 1 Ma. Posteriormente formaram-se as camadas seguintes, que se denominaram Camadas Masek (Masek Beds, de 1 Ma a 400 000 anos) —com um período de importante atividade tectônica e vulcanismo entre 600 000 e 400 000 anos—, Camadas Ndutu (400 000 a 75 000 anos) e Camadas Naisiusiu (22 000 a 15 000 anos) e que contêm ferramentas da indústria lítica desenvolvida por Homo sapiens.” Disponível em pt.wikipedia.org/wiki/Garganta_de_Olduvai, acesso em 17/06/2017.
6 HESÍODO. Os trabalhos e os dias / Hesíodo ; edição, tradução, introdução e notas : Alessandro Rolim de Moura. Curitiba, PR : Segesta, 2012
7 Segundo pt.wikipedia.org/wiki/Teoria_da_cat%C3%A1strofe_de_Toba, acesso em 17/06/2017.
como citar:
SANDEVILLE JR., Euler. “Enxergar o fundo do lago para ver durante a tempestade… (sobre criacionismo e evolucionismo, disputas sobre as origens e o presente)“. Ensino e Pesquisa, A Natureza e o Tempo (o Mundo), on line, São Paulo, 2017.
[para citar este artigo conforme normas acadêmicas, copie e cole a referência acima (atualize dia, mês, ano da visita ao sítio)]
a natureza e o tempo (o mundo)
um projeto de euler sandeville
OS TEMPOS E OS MUNDOS: SOBRE A ANTIGUIDADE DOS MUNDOS
A LONGA ANTIGUIDADE DOS MUNDO I
A AURORA NA NEBLINA (os relatos das origens, até o neolítico)
Nossa Terra Incognita: amnésia e imaginação: hic sunt dracones [1]
Os ruídos do silêncio…
Euler Sandeville Jr.
Pesquisar é indagar a existência.
φύσις κόσμος αίων κρόνος καιρός
este mundo está em guerra, embora muitos de nós desejem a paz
ARTIGOS
APRESENTAÇÃO DA SEÇÃO A AURORA NA NEBLINA. Euler Sandeville Jr. Ensaio de abertura da seção, retomando algumas descobertas da arte rupestre e nosso modo devassar um passado hoje silencioso.
Sintamo-nos convidados a adentrar nesta seção a longa antiguidade dos mundos.
“Pesquisadores da Universidade de Oregon, nos Estados Unidos, descreveram uma nova espécie de planta graças à descoberta de flores fossilizadas dentro de pedaços de âmbar que têm pelo menos 15 milhões de anos. (…) A nova planta, batizada de Strychnos electri, pertence ao gênero de arbustos tropicais e árvores conhecidos por produzir a toxina estricnina. (…) Mas essas plantas também são da família das “asterídeas”, que inclui mais de 80 mil plantas floríferas – até mesmo muitas que são de consumo humano, como a batata, o café e o girassol”. Disponível em Cientistas descobrem flor ‘intacta’ em fóssil de 15 milhões de anos [16/02/2016] noticias.uol.com.br/ciencia/ultimas-noticias/bbc/2016/02/16/cientistas-descobrem-flor-intacta-em-fossil-de-15-milhoes-de-anos.htm acesso em 17/02/2016, a mesma matéria, com mesmo título Disponível em bbc.com/portuguese/noticias/2016/02/160216_flor_fossil_descoberta_fn.shtml?ocid=socialflow_twitter______________________ NOTAS
1 Frase utilizada em certo mapa medieval. Era comum na cartografia medieval também a representação de dragões e criaturas sobrenaturais. No entanto, a frase também é utilizada por programadores. No Mozilla Firefox a frase aparece quando se digita “about:config” acessando o ambiente de programação do navegador. informação disponível em pt.wikipedia.org/wiki/Hic_sunt_dracones↑.
espiral da sensibilidade e do conhecimento
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