Arquivo da categoria: 4-HISTÓRIA DA NATUREZA E DA CULTURA

Édito de Milão, 313

a seguir, reproduzo duas traduções, com pequenas diferenças

313, 13 de junho1, ÉDITO DE MILÃO2

Há muito tempo consideramos que a liberdade de culto não deve ser negada, mas que ao pensamento dos homens deve ser concedido o direito de cuidar de coisas espirituais de acordo como cada um escolher pessoalmente. Portanto, já emitimos ordens de que os Cristãos devem guardar e manter a fé de sua própria confissão e adoração. Mas nessas ordens, pelo qual esse direito foi concedido às pessoas acima mencionadas, muitas e diversas condições claramente pareciam ter sido adicionadas e pode, talvez, ser o caso de algumas dessas pessoas em pouco tempo tornarem-se relutantes em praticar a sua religião e observâncias.

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carta de Plínio a Trajano, c. 110 d.C.

a seguir, reproduzo duas traduções, com pequenas diferenças

É uma regra, Senhor, que eu observo inviolavelmente, referir-me a vós em todas as minhas dúvidas; pois quem é mais capaz de guiar a minha incerteza ou de informar a minha ignorância? Sem nunca ter assistido a sequer um julgamento dos Cristãos, eu sou ignorante no que diz respeito ao método e aos limites a serem observados tanto na análise quanto na punição. Se alguma diferença deve ser permitida entre o mais jovem e o adulto; se o arrependimento permite o perdão, ou se nada pode salvar um homem uma vez convertido ao Cristianismo; se a mera declaração solene do Cristianismo, embora sem crimes, ou se somente os crimes que lhe estão associados são puníveis – em todos estes pontos tenho grandes dúvidas.

No entretanto, o método que tenho observado com aqueles que têm denunciado a mim que são Cristãos é o seguinte: eu lhes pergunto se são Cristãos; se confessaram, repeti a pergunta mais duas vezes, acrescentando a ameaça de punição capital; caso eles ainda perseverarem, eu os ordenei à execução. Pois qualquer que seja a natureza do seu credo, pelo menos não pude sentir nenhuma dúvida de que transgressão e obstinação inflexíveis merecem castigo. Havia outros que também possuíam a mesma paixão, mas sendo cidadãos de Roma, eu os dirigi para que lá pudessem ser julgados.

Essas acusações se espalharam (como é normalmente o caso) a partir da simples investigação do assunto e de diversas formas de corrupção virem à tona. Um cartaz foi colocado, sem qualquer assinatura, acusando um grande número de pessoas pelo nome. Aqueles que negaram ser, ou ter sido, Cristãos, e que repetiram depois de mim uma invocação aos deuses e ofereceram adoração, com vinho e incenso, à vossa imagem, que eu tinha, juntamente com a dos deuses, encomendado para essa ocasião, e que finalmente amaldiçoaram a Cristo – achei que fosse adequado dispensar-lhes. Outros que foram nomeados por esse informante de primeira confessaram ser Cristãos, mas em seguida negaram; verdade, eles tinham sido de persuasão, mas finalmente desistiram de algo que para alguns era de cerca de três anos, outros há muitos anos e alguns tanto como vinte e cinco anos atrás. Todos eles adoraram a vossa estátua e as imagens dos deuses e amaldiçoaram a Cristo.

Afirmaram, no entanto, que toda a sua culpa, ou o seu erro, foi que tinham o hábito de reunião em um determinado dia fixo antes do amanhecer do dia, quando cantavam em versos alternados um hino a Cristo, como a um deus, e vincularam-se por um juramento solene, não a qualquer maldade, mas a nunca cometer qualquer fraude, roubo ou adultério, nunca falsificar a sua palavra, nem deixar de entregar uma relação de confiança quando necessário; após essa reunião, era o seu costume se separar para então se reunir novamente e dividir os alimentos – mas a comida de um tipo comum e inocente. Mesmo esta prática, no entanto, eles abandonaram após a publicação do meu edital, pelo qual, de acordo com vossas ordens, eu tinha proibido as associações políticas. Julguei tanto mais necessário extrair a verdade real, com a ajuda de tortura de duas escravas que eram diaconisas de estilo, mas eu não consegui descobrir nada mais do que superstição depravada e excessiva.

Por isso então adiei o processo e dirigi-me diretamente ao vosso conselho. O assunto parecia ser importante o suficiente para que fosse dirigido a vós, especialmente considerando os números em perigo. Pessoas de todas as classes e idades e de ambos os sexos são, e serão, envolvidas na acusação, pois esta superstição contagiosa não se limita apenas às cidades, mas tem se espalhado pelas aldeias e zonas rurais; parece possível, no entanto, verificar e curá-la.1


outra tradução

Tenho por praxe, Senhor, consultar Vossa Majestade nas questões duvidosas. Quem melhor dirigirá minha incerteza e instruirá minha ignorância? Nunca presenciei nenhum julgamento de cristãos. Por isso ignoro as penalidades e investigações costumeiras, bem como as pautas em uso. Tenho muitas dúvidas a respeito de certas questões, tais como: estabelecem-se diferenças e distinções de acordo com a idade? Cabe o mesmo tratamento a enfermos e robustos? Aqueles que se retratam devem ser perdoados? A quem sempre foi cristão, compete gratificar quando deixa de sê-lo? Há de punir-se o simples fato de alguém ser cristão, mesmo que inocente de qualquer crime, o exclusivamente os delitos praticados sob esse nome? Entretanto, eis o procedimento que adotei nos casos que me foram submetidos sob acusação de cristianismo. Aos incriminados pergunto se são cristãos. Na afirmativa, repito a pergunta segunda e terceira vez, ameaçando condená-los à pena capital. Se persistirem, condeno-os à morte. Não duvido que, seja qual for o crime que confessem, sua pertinácia e obstinação inflexíveis devem ser punidas. Alguns apresentam indícios de loucura; tratando-se de cidadãos romanos, separo-os para enviá-los a Roma. Mas o que geralmente se dá é o seguinte: o simples fato de julgar essas causas confere enorme divulgação às acusações, de modo que meu tribunal está inundado com uma grande variedade de casos. Recebi uma lista anônima com muitos nomes. Os que negaram ser cristãos, considerei-os merecedores de absolvição. De fato, sob minha pressão, devotaram-se aos deuses e reverenciaram com incenso e libações vossa imagem colocada, para este propósito, ao lado das estátuas dos deuses, e, pormenor particular, amaldiçoaram a Cristo, coisa que um genuíno cristão jamais aceita fazer. Outros inculpados da lista anônima começaram declarando-se cristãos e, logo, negaram sê-lo, declarando ter professado esta religião durante algum tempo e renunciando a ela há três ou mais anos; alguns a tinham abandonado há mais de vinte anos. Todos veneraram vossa imagem e as estátuas dos deuses, amaldiçoando a Cristo. Foram unânimes em reconhecer que sua culpa se reduzia apenas a isso: em determinados dias, costumavam comer antes da alvorada e rezar responsivamente hinos a Cristo, como a um deus; obrigavam-se por juramento não a algum crime, mas à abstenção de roubos, rapinas, adultérios, perjúrios e sonegação de depósitos reclamados pelos donos. Concluído este rito, costumavam distribuir e comer seu alimento. Este, aliás, era um alimento comum e inofensivo. Eles deixaram essas práticas depois do edito que promulguei, de conformidade com vossas instruções, proibindo as sociedades secretas. Julguei ser mais importante descobrir o que havia de verdade nessas declarações através da tortura a duas moças, chamadas diaconisas, mas nada achei senão superstição baixa e extravagante. Suspendi, portanto, minhas observações na espera do vosso parecer. Creio que o assunto justifica minha consulta, mormente tendo em vista o grande número de vítimas em perigo. Muita gente, de todas as idades e de ambos os sexos, corre o risco de ser denunciada e o mal não terá como parar. Esta superstição contagiou não apenas as cidades, mas as aldeias e até as estâncias rurais. Contudo, o mal ainda pode ser contido e vencido. Sem dúvida os templos que estavam quase desertos são novamente frequentados; os ritos sagrados há muito negligenciados, celebram-se de novo; vítimas para sacrifícios estão sendo vendidas por toda a parte, ao passo que, até recentemente, raramente um comprador era encontrado. Esses indícios permitem esperar que legiões de homens sejam susceptíveis de emenda, desde que tenham a oportunidade de se retratar.2

notas


1Disponível em allaboutthejourney.org/portuguese/plinio-o-jovem.htm acesso em 15 de março de 2021. Plínio o Jovem (c. 62 – c.113 DC) Plínio Segundo, Epístolas, X.96. era o governador romano da Bitínia (atual região ao noroeste da Turquia). Cerca de 111 ou 112 DC, ele escreveu a seguinte carta ao imperador Trajano de Roma pedindo conselhos sobre como lidar com os Cristãos.

2 ATENÇÃO, COLOCO ESSA FONTE, MAS ATUALMENTE ESTE SITE ESTÁ MARCADO COMO PERIGOSO PELO CHROME. Tradução obtida em em e-cristianismo.com.br/historia-do-cristianismo/documentos-historicos/carta-de-plinio-a-trajano.html acesso em 13 de julho de 2018 (segundo o sítio, de BETTENSON, H., Documentos da Igreja Cristã, editora ASTE, páginas 28 a 30), acrescentava este parágrafo que a outra versão não traz.

Estatuas de Plinio el Viejo (A) y Plinio el Joven (B) en la fachada del Duomo de Como (la Catedral), S.Maria Maggiore, realizadas por Tommaso y Jacobo Rodari a fines del siglo XV. Disponível em researchgate.net/figure/Figura-1-Estatuas-de-Plinio-el-Viejo-A-y-Plinio-el-Joven-B-en-la-fachada-del-Duomo_fig1_281789150 acesso em 15 de março de 2021

religião, mundo contemporâneo e esferas públicas

Euler Sandeville Jr.
22 de dezembro de 2020

Instituto da Paisagem:
linha de pesquisa 3/3 2021

No momento, configura-se como uma indagação existencial e intelectual diante de configurações e contradições intensas contemporâneas, em perspectiva exploratória, que pretende-se venha a convergir em etapas e procedimentos de pesquisa. Insere-se dentro do projeto A Natureza e o Tempo (o Mundo), atravessando as três linhas temáticas desse projeto (conheça as linhas do projeto A Natureza e o Tempo aqui↑) e pensamos como uma das 3 frentes de pesquisa do Instituto da Paisagem pensadas, neste momento, para 2021, ao lado dos estudos ambientais urbanos ↑ e de territórios de desenvolvimento local ↑.

O tema é polêmico e necessariamente inquietante no momento atual, ao tocar em pontos sensíveis e extremamente disputados e conflitivos da cultura, das práticas e disputas políticas contemporâneas, recebendo bastante atenção em estudos acadêmicos, teológicos, organizações políticas e nos meios de comunicação.

Contribuem alguns estudos realizados para o projeto A Natureza e o Tempo na interpretação da cultura contemporânea e ensaios críticos sobre outras temáticas, indicando que o tema deve ser colocado em um campo social amplo, sem prejuízo das convicções de fé, das mobilizações da religião e dos conflitos ideológicos emergentes na fricção de narrativas antagônicas e de projetos políticos contraditórios. Dá continuidade a trabalhos iniciados na pós-graduação em História da Igreja e da Teologia e outros estudos: Religião Pública: Contradições e Disputas nas Esferas da Vida Pública, Religião Pública: Controvérsias no espaço Público Brasileiro, Um Ensaio Difícil: Contrariedades e Afirmações. Narrativas da Guerra dos Discursos. No momento, realizamos a consulta de autores Agamben, Eagleton, Hannah Arendt, Habermas, Paula Montero, além de autores no âmbito das denominações religiosas comprometidos com a temática da religião na esfera de vida pública e incursões em representações artísticas/imagéticas e narrativas.

Nesta abordagem, o tema não tem como foco a teologia pública e outras formas de teologia católica e protestante, mas não pode evitar o confronto com o uso da fé e da religião em disputas que lhe são estranhas a seus fundamentos. Entende-se que, para além das comunidades de fé, a pauta da subjetividade se constituiu como pauta política e que a distinção entre o público e o privado está longe de ser nítida na contemporaneidade, bem como esferas que se pretendem seculares e políticas de todo o espectro incorporaram elementos e formas da religião esvaziadas de seu conteúdo e vice-versa.

Implica a problematização aberta ao questionamento da inserção social da fé e da(s) igreja(s) no mundo contemporâneo, na vida ativa e nas esferas públicas, bem como a discussão de religiosos e não religiosos em torno da questão e das representações midiáticas e narrativas postas em movimento no debate social e nas contradições e limites que encontram. No entanto, o tema sugere também mais do que isso, se pensarmos o foco em mundo contemporâneo não apenas como suas zonas de conflito da esfera pública moderna e do secular no pensamento contemporâneo, com suas disputas de valores não apenas com a religião ou a política. O “mundo contemporâneo”, com suas contradições, conflitos e possibilidades, é também aquele de realização da existência, com suas poéticas e esperanças, abrindo a indagação, entre outras, do lugar da religião e da fé na experiência vivida entre outros e com outros em um contexto não apenas de modernidade e consumo, mas de postura perante o mundo.

No fim de contas, a questão da esfera pública adquire importância apenas na medida em que a existência pessoal (ao invés de individual) e social no nosso contemporâneo coloca questões abertas, desafiadoras. Ou seja, há um tema mais amplo sem o qual o debate não faria sentido senão como forma de ensimesmamento, que não deixa de ser problemático mas não se resume a ser problemático, definido em religião e mundo contemporâneo: a construção de sentido e sentidos da existência e como nos orientam e direcionam nas práticas.

A definição do projeto ainda depende de conseguirmos contar com algum recurso humano para 2021, visando o acompanhamento de representações sociais em torno do tema, para que resulte em produção mais efetiva.

SANDEVILLE JR., Euler. Religião, mundo contemporâneo e esferas públicas. Instituto da Paisagem+A Natureza e o Tempo. Ensino e Pesquisa, https://ensinoepesquisa.net.br/ on line, 2020.

Euler Sandeville Jr., dezembro de 2020.

Na inauguração do Templo de Salomão estiveram presentes a presidente Dilma Roussef, o governador Geraldo Alckimn, o vice-presidente Michel Temer, os ministros Gilberto Carvalho (Secretaria-Geral da Presidência) e Aloizio Mercadante (Casa Civil), o ministro do Supremo Tribunal Federal Ricardo Lewandowski, o prefeito Fernando Haddad, o ex-prefeito Gilberto Kassab, o ministro Marco Aurélio Mello do Supremo Tribunal Federal; a presidente do Superior Tribunal Militar, Elizabeth Teixeira Rocha; o diretor da Polícia Federal, Leandro Daiello Coimbra; o presidente do banco Bradesco, Luiz Carlos Trabuco Cappi; o cônsul-geral de Israel, Yoel Barnea. Também estiveram no evento Gugu Liberato, Domingos Meirelles, Percival de Sousa, Geraldo Luís, Adriana Araújo, Chris Flores, Milena Ceribelli, Ticiane Pinheiro, Britto Jr, Sabrina Sato, Daniela Albuquerque, Amilcare Dallevo Jr e Netinho de Paula.

Sertões: Intérpretes e acervos – Os sertões em alemão e em francês: Martius e Saint Hilaire

Maria de Fátima Costa (UFMT),
Lorelai Kury (FIOCRUZ e UERJ),
Pablo Diener (UFMT).
Mediação: Iris Kantor (FFLCH) e Jaime Oliva (IEB)

Instituto de Estudos Brasileiros – IEB / USP

IEB-Sertões: Intérpretes e acervos – Os sertões em alemão e em francês: Martius e Saint Hilaire

a natureza e o tempo (sumário)

A NATUREZA E O TEMPO (O MUNDO):
estudos em história da cultura e da paisagem: representações, imaginário, práticas e poéticas
Euler Sandeville

DO BIG BANG AO DEPOIS DE AMANHÃ

φύσις κόσμος αίων κρόνος καιρός

O Projeto A Natureza e o Tempo (o Mundo) desenvolve estudos de história da cultura a partir da história da ideia de natureza e dos saberes e processos criativos na transformação do espaço, em uma perspectiva crítica dos nexos nos processos de sua produção, com foco nos campos da representação e do imaginário, da construção e transformação de significados, valores e comportamentos e das tensões entre diferentes territorialidades e representações culturais. Colocam-se assim em questão as visões de mundo e a construção de seus significados, bem como os esforços interpretativos, que os diversos sujeitos e projetos mobilizam no âmbito do imaginário e da cultura e nos processos de produção social das paisagens, suas formas de subjetivação, apropriação, valoração e gestão.

APRESENTAÇÃO

APRESENTAÇÃO (apresenta a proposta do trabalho, algumas questões de método e organização do trabalho)

    SOBRE A ANTIGUIDADE DOS MUNDOS

    1. A AURORA NA NEBLINA (os relatos das origens, até o neolítico)
      Nossa Terra incognita: amnésia e imaginação: hic sunt dracones
    2. A LONGA ANTIGUIDADE DOS MUNDOS I (3500 a.C. 64 a.C.)
      A natureza, o sagrado e o sobrenatural, o divino, as terras e os tempos.
    3. A LONGA ANTIGUIDADE DOS MUNDOS II (63 a.C. a 1054 d.C.)
      A natureza, o sagrado e o sobrenatural, o divino, as terras e os tempos.
    4. MUNDUS NOVUS (cerca 1054 a 1750/1774)
      A invenção da Europa, a nova Antiguidade. Do sobrenatural à natureza.

    SOBRE A BREVIDADE DO PRESENTE

    5. MUNDOS MODERNOS (c.1750 A 1945)

    6. MUNDOS CONTEMPORÂNEOS (OU DEPOIS DO FIM DO MUNDO) (depois de 1945)
    O mundo como matéria. about:config: hic sunt dracones.


    NATUREZA E CULTURA NO BRASIL



    espiral da sensibilidade e do conhecimento
    um projeto de euler sandeville

    a pesquisa: representações e poéticas

    projeto a natureza e o tempo (o mundo)

    ESTUDOS EM HISTÓRIA DA CULTURA, DAS ARTES E DA PAISAGEM:
    REPRESENTAÇÕES, IMAGINÁRIO, PRÁTICAS E POÉTICAS


    O que talvez melhor defina o meu interesse com esse projeto é o estudo das representações e do imaginário, em suas dimensões históricas e culturais, integrando diferentes campos de valores e práticas, territorialidades e temporalidades. Os estudos se organizam a partir de ensaios temáticos sobre diferentes séries documentais selecionadas (narrativas, memórias, relatórios, artes plásticas, música, cinema, literatura, ciências, mas também as configurações do espaço natural e habitado em sua transformação), considerando reciprocamente cultura e espaço, procurando desvendar os contextos históricos em que são produzidos, o ideário que mobilizam, suas percepções e representações. Atualmente estão concebidos em três seções temáticas interdependentes que exploram diferentes temporalidades:

    • Estudos Judaico-Cristãos: História, Espaço e Cultura: são estudos sobre os macroarranjos territoriais nos quais se configuram em sua longa duração essas tradições e ensaios temáticos onde temos o espaço e experiência do sagrado e do transcendente, as dimensões da devoção e da adoração, mas também os da organização social e dos modos de viver e conviver no privado e no público, nas comunidades de fé e suas inserções mais amplas, as territorialidades e tensões culturais implicadas. A ênfase recai em dois grandes blocos: na Antiguidade Tardia e na Idade Média e em um segundo bloco na “Era Moderna” e na “Contemporânea”.
    • Estudos da Cultura Contemporânea: o que é contemporâneo? O que caracteriza o tempo que vivemos e o diferencia? Qual a duração das permanências e sua transformação? Diferentes objetos definem diferentes temporalidades. Sucessivos pontos de partida ou retorno definem os estudos, alguns de natureza milenar, mas sempre tendo como um ponto de inflexão o período entre o Iluminismo e o penúltimo quarto do século XIX e o período a partir do final da Segunda Guerra Mundial. Emergem questões subjetivas e sociais intensas, comprometidas com a dimensão coletiva da ética, da justiça, dos afetos; emergem visões da natureza e da sociedade, bem como do sentido da vida na construção de visões de mundo, da história, do devir humano, em um mundo contemporâneo a elas que também é de incompreensão, indiferença e violência, disputa pelo poder político na construção dos sentidos na tecitura do social, de suas instituições.

    • Estudos Brasileiros: Paisagem, Urbanização e Cultura: estuda representações da natureza e do Brasil a partir de ensaios sobre diferentes séries documentais selecionadas (narrativas, memórias, relatórios, artes plásticas, música, cinema, e outras fontes), procurando desvendar os contextos históricos em que são produzidos, o ideário que mobilizam, suas percepções e representações. A partir de séries documentais e interlocutores selecionados, pergunta-se que representações da realidade mobilizaram e quais mobilizamos ao visitá-los; e porque o fazemos. Interessam visões de mundo que afloram nesse processo e nos debates.

    Logo de A Natureza e o Tempo (o Mundo). Código de barras da cultura, criação Euler Sandeville (2007). Folha de palmeira, foto de Euler Sandeville, 2010.

    natureza e artifício: o imaginário, as representações e as práticas

    NATUREZA E ARTIFÍCIO: O IMAGINÁRIO, AS REPRESENTAÇÕES E AS PRÁTICAS

    resumo

    As representações – e toda representação mobiliza um imaginário, nem sempre um ícone (a confusão e distinção entre os termos permanece movediça, todo imaginário é uma dimensão da representação) – são uma condição mental nas quais se constroem os mundos (histórica e subjetivamente). Estão presentes (as representações, imaginário, o simbólico, a ideologia, termos que comumente se sobrepõem) tanto no fazer quanto na subjetividade como condições indissociáveis, ainda quando a indagação intelectual os dissocie para tornar inteligível e comunicável o pensar sobre. Isto é, ocultam-se e perdem-se, revelam-se desvelam-se, no comportamento, nos (des)afetos, e na produção de artefatos, objetos, cidades, obras de arte (por exemplo, a música, a pintura). Não se esgotam em sua materialidade (o que é claro nas artes), nem sua linguagem é a materialidade, mas é o modo de habitar criativamente sua materialidade, na elaboração, na recepção, no registro do que deva ser. Nesse sentido, o imaginário, a ideologia, a ciência, são formas nada estanques de representação. Do mundo, do estar no mundo, do mundo em que se reconhece estar. É sim poética, trágica, em vias de tornar-se liminar e na tensão de tornar-se residente, conservação que entretanto a simples existência já implica em transformação.

    como citar:

    SANDEVILLE JR., Euler. Natureza e artifício: o imaginário e as representações e as práticas. A Natureza e o Tempo (o Mundo), on line, São Paulo, 2020.

    Este texto foi escrito como um subsídio sintético a conteúdos do site e para alunos das disciplinas com essa temática. Como a temática das representações é um eixo condutor desses trabalhos, a primeira coisa a se distinguir é que o modo como emprego representação aqui vai bem além da representação como imagem, figura, ideologia ou imaginário. A ideia de representação as inclui em toda a sua densidade antropológica, intersubjetiva e social, mas também inclui a materialidade do espaço em que necessariamente se realizam as práticas humanas (o termo espaço é tratado, com algumas observações, no sentido dado por Mílton Santos 1985, 2002, aqui trazido ao campo das representações). O sentido primeiro que dou a representações e que emprego geralmente esse termo remonta ao campo das visões de mundo, com a sua implicação dialética de valores e práticas decorrentes.

    As representações, o imaginário, o simbólico, a ideologia, as práticas, são termos que, obviamente não significando a mesma coisa, estabelecem inúmeras sobreposições e sombreamentos entre eles, permanecendo a distinção entre esses termos tendendo a campos movediços. Condição rica da linguagem, minimizada quando se deseja aprisionar esses campos de significados em conceitos rígidos, por vezes tão necessários ao pensamento sobre o mundo. Essa riqueza da linguagem, por outro lado, ao invés de ser um problema de método ou apenas uma fragilidade conceitual, é uma potência significativa, já que emergem tanto do fazer quanto da subjetividade como condições indissociáveis, tanto do pessoal quanto do coletivo, do privado tanto quanto do público, em que se insere nossa capacidade de pensar sobre o mundo (pares que já são em si representações com amplos espaços transicionais), ainda quando a indagação intelectual os dissocie para tornar inteligível e comunicável o pensar sobre.

    Uma discussão que acho interessante sobre representação e imaginário é trazida por Jacques Le Goff em O imaginário medieval (1994). No entanto, as representações são aqui entendidas na forma mais ampla, implicando tanto o imaginário quanto a ideologia, coisas bem distintas mas não estanques. Embora o imaginário seja um campo bastante atraente, não pode ser pensado desvinculado das práticas sociais no tempoespaço em que dialoga. Por outro lado, certas tradições entenderam as representações sociais como ideologia e dominação, o que me parece extremamente reducionista.

    As representações estão além da ideologia, implicam em uma condição humana muito mais ampla e aberta. No entanto, a ideologia as disputa. A ideologia é aqui entendida como uma manipulação restritiva e reducionista das representações e valores (não deixando de ser ideologia a que se pretende contra-ideologia), dominando sua validação para um propósito específico potencialmente capaz de mobilizar e direcionar desejos, atitudes, ações. Basicamente, seu fim é a manutenção ou a conquista do poder, mas para isso atravessa o cotidiano ou estabelece diálogos com ele pela limitação da linguagem e instrumentalização das representações. A ideologia é a redução do mundo possível a uma ordem instrumentalizada para o poder ou a identificação que resulte em ação direcionada, potencialmente acrítica mesmo que reativa.

    Por essa razão, ainda que seu campo seja o da disputa pelo poder, seu controle se dá na formatação e limitação da percepção crítica e investigativa do mundo, propondo um mundo onde os acontecimentos não importam, já estão classificados a priori e o sujeito ou grupo sabe, de antemão portanto, como reagir, fechando sua adesão acrítica de si e do grupo em antagonismo ao que se opõe. No entanto, a ideologia não pode também ser colocada em uma perspectiva moral apenas, são fenômenos sociais complexos em disputa (remeto a John B. Thompson em Ideologia e cultura moderna. Teoria social crítica na era dos meios de comunicação de massa. [1990]).

    As representações estão em um campo de significados, desejos e ações muito mais amplo e impreciso, aberto, mesmo quando disputadas pela ideologia ou alimentadas pelo imaginário. As representações são entendidas como visões de mundo, em todo o seu campo necessariamente amplo e difuso também, com sua complexidade poética, existencial e de mobilização e constituição de práticas, significados e valores, na sua contribuição e interatividade na configuração histórica do ambiente social e espacial em que se dão. As representações – e toda representação pode apoiar-se, mobilizar e transformar um imaginário – são uma condição mental nas quais se constroem os significados dos mundos, histórica e subjetivamente, mas também material e comportamental.

    Ao contrário da ideologia, que se expõe para disputar ainda que sua complexidade precise ser inquirida em um campo complexo, as representações, como o imaginário, ocultam-se e perdem-se em dimensões que ultrapassam a narratividade e incluem possibilidades poéticas entranhadas de modo que apenas em parte revelam-se e desvelam-se no comportamento, nos (des)afetos, e na produção de artefatos, objetos, cidades, obras de arte (por exemplo, a música, a pintura), hábitos, costumes, valores, ideologias e suas narrativas em disputa. Não se esgotam em sua materialidade (o que é claro nas artes), mas não existem sem ela ou alheias a ela. Trata-se do modo de habitar criativamente sua materialidade, na elaboração, na recepção, no registro e reinvenção do que deva ser sempre em processo, sempre em múltiplas temporalidades e espacialidades inter-relacionadas; sempre que, ocultando-se, revelam-se um pouco; sempre que revelando-se, ocultam-se outro tanto.

    Daí também a expressão das paisagens como representação não se reduz nem à sua forma nem à imagem, que são importantes sem dúvida; é necessário entendê-las como experiências partilhadas e vivenciadas, reunindo práticas e valores com suas contradições, como construção social decorrente da interação do trabalho e da cultura humana na transformação contínua do ambiente (Euler Sandeville Jr., 2004, 2005, 2013; Ulpiano Bezerra de Menezes 2002).

    Nesse sentido, o imaginário, a ideologia, a ciência, são formas nada estanques de representação do mundo, do estar no mundo, do/no mundo em que se reconhece estar. São visões de mundo em contradição ou afinidade, poéticas, trágicas, sociais, transgeracionais, interpessoais, subjetivas, espaço-temporais, concretizando-se no mundo da existência e das obras e formas do trabalho e do convívio humano. Do mesmo modo que a sociedade sem a construção de seu espaço ou as sem as relações de produção mas também seus valores seria uma abstração discursiva, a sociedade esvaziada de suas representações e imaginário resulta esvaziada de significado. Portanto, abrigam potências e contradições poderosas e embrenhadas entre si, que em certas circunstâncias coletivas mostram-se em vias de tornarem-se liminar, exatamente quando são menos compreendidas na imersão em sua tensão em que atuamos nelas e sobre elas, colocando-as em passado em várias camadas temporais e em devir: conservação que a simples existência já implica em transformação.

    REFERÊNCIAS CITADAS

    LE GOFF, Jacques. Prefácio à 1a edição de O imaginário medieval. Trad. Manuel Ruas. Portugal: Estampa, 1994 pg 11 a 30.

    MENEZES, Ulpiano Bezerra de. A paisagem como fato cultural. in YÁZIGI, Eduardo (org). Turismo e Paisagem. São Paulo, Contexto, 2002, pg. 65 a 82

    SANDEVILLE JR., Euler. Paisagens e métodos. Algumas contribuições para elaboração de roteiros de estudo da paisagem intra-urbana. São Paulo: Paisagens em Debate n. 2, 2004.

    SANDEVILLE JR., Euler. Paisagem. São Paulo: Paisagem e Ambiente n. 20, 2005, pg. 47-59.

    SANDEVILLE JR., Euler. Paisagens partilhadas. São Paulo: Paisagem e Ambiente, 30 (2012), 2013, p. 205-214

    SANTOS, Milton. A Natureza do Espaço: Técnica e tempo, razão e emoção. São Paulo, EDUSP, 2002.

    SANTOS, Milton. Espaço & Método. São Paulo, Nobel, 1985.

    THOMPSON, John B. Ideologia e cultura moderna. Teoria social crítica na era dos meios de comunicação de massa. Trad. Grupo de Estudos sobre Ideologia, Comunicação e Representações Sociais da Pós-Graduação do Instituto de Psico,ogia da PUCRS; 9a. ed.Petrópolis, RJ: Vozes, 2011 [1990]


    como citar:

    SANDEVILLE JR., Euler. Natureza e artifício: o imaginário e as representações e as práticas. A Natureza e o Tempo (o Mundo), on line, São Paulo, 2020.


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    Foto Euler Sandeville, Folha, detalhe, 2009.
    Folha, detalhe. Foto de Euler Sandeville, 2009.

    três mapas do mundo. mapa do saltério (c. 1265), mapa de paolo toscanelli (1474) e nosso norte é o sul (1943)

    TRÊS MAPAS DO MUNDO. MAPA DO SALTÉRIO (c. 1265), MAPA DE PAOLO TOSCANELLI (1474) E NOSSO NORTE É O SUL (1943)
    Euler Sandeville Jr.
    São Paulo, 01 de maio de 2017, 09 de março de 2020

     

    Muitas vezes olhamos as coisas e não as vemos de fato, porque achamos que já sabemos. Queria exemplificar isso com três mapas, extraordinários. Como você poderá notar, as imagens reproduzidas nesta página têm um sentido especial, uma significação. São representações do mundo, em diferentes épocas da história, compondo discursos e indagações humanas.

    Serão apresentadas aqui imagens de anos tão díspares (1265, 1474 e 1943), que a princípio nada têm em comum, mas através das quais podemos indagar e ponderar a natureza do nosso próprio tempo, da nossa época em vertigem e das que nos antecederam longamente, talvez às vésperas de novas transformações sem precedentes como nos encontramos.

    O mapa abaixo integra um saltério do século XIII. A beleza desse mapa, de apenas 8,9×12,4 cm, de uma enorme riqueza de detalhes mostrando o cuidado em sua composição, só pode ser apreendida se o considerarmos em sua complexidade. Não é uma imagem no sentido de ícone de adoração, como havia tantas na época, embora um saltério tenha a finalidade devocional.

    Este não é o caso desta imagem reproduzida abaixo porque, provavelmente sendo também isso, é bem mais do que isso. Trata-se de uma sofisticada representação de mundo. Ela nos ajuda a entender que o mundo em que essas pessoas viviam, certamente cheio de agruras, como você há de reconhecer, é e não é também o nosso.

    Mapa do Saltério, abadia de Westminster, 1265 (8,9 x 12,4 cm)

     

    Nesse mapa de c. 1265, na parte superior, a leste, vemos uma figura simbolizando o Cristo, tendo em sua mão esquerda uma representação do mundo, conforme convenções medievais (o mapa TO, assim chamado porque inscreve-se em um círculo indicado pelo O, e o T representa a separação entre Europa, Ásia e África, tendo no centro Jerusalém). Logo abaixo dele está representada a origem da humanidade, com Adão e Eva na circunferência próxima do Cristo e os quatro rios do jardim no Éden. Na parte inferior do mapa, que se orienta ao poente, o qual muitas vezes representa a morte, os dragões, submetidos a Cristo, mas à espreita dos incautos.

    Ao contrário da convenção que se nos tornou familiar, como se fosse natural (e não é, o norte desenhado na vertical é apenas uma convenção nossa), até o século XVI muitos mapas não estavam orientados em seu eixo vertical no sentido norte-sul, mas no leste oeste (como neste acima) ou no sul-norte.

    A representação do mundo conhecido nesse mapa é de uma riqueza e sofisticação extraordinária; não se trata apenas de uma carta de localização no espaço com muitos pontos desconhecidos, mas de localização no tempo (passado e futuro), na história, na eternidade, na própria natureza do mundo.

    A título de exemplo, à direita chegamos aos limites da África, então praticamente desconhecidos ao sul, na região tórrida que se duvidava poder ser habitada, e os encontramos ocupados por criaturas que povoavam o imaginário medieval. No centro, como nas cartas do período, Jerusalém. Ao norte, à esquerda, nos limites da Ásia, Gog e Magog, mencionados no Apocalipse, com uma considerável liberdade de interpretação, pois todos esses elementos mesclam tradições cristãs e tradições clássicas.

    O segundo mapa é uma reconstituição do mapa do florentino Paolo dal Pozzo Toscanelli (Florença, 1397 — Florença, 1482). Tratar-se de uma reconstituição já é um elemento que nos deve chamar a atenção. Seu propósito e arrojo é inteiramente diverso.

    Em 1474 escreveu uma carta, acompanhada de um mapa, ao seu correspondente português Fernão Martins, cónego da Sé de Lisboa, fazendo, através deste chegar a sua proposta ao Rei D. Afonso V. O seu projecto era, basicamente, o de navegar para ocidente e assim descobrir a Ásia pelo Oeste. O original desta carta nunca foi encontrado, mas sabe-se da sua existência pelo próprio Toscanelli, que depois a transcreveu e enviou a Cristóvão Colombo, a acompanhar a sua sugestão de viajar para Oeste para atingir a Ásia.
    Disponível em pt.wikipedia.org/wiki/Paolo_dal_Pozzo_Toscanelli e en.wikipedia.org/wiki/Paolo_dal_Pozzo_Toscanelli acesso em 12/10/2019.

    O que há de extraordinário na reconstituição desse mapa, como em outros que circularam no período, é que um erro de cálculo na circunferência da Terra quase sobrepunha a Ásia à América, como sabemos hoje. Registros como esse mostram o longo processo de conhecimento do mundo, e as diferentes significações que essas representações vão cumprindo para diferentes projetos. Não só isso, um mundo que nos parece óbvio, na verdade, guarda uma história, formas de olhar e projetos que se transformam, revelando e apagando significados.

    Reconstituição do Mapa de 1474 de Paolo dal Pozzo Toscanelli (Florença, 1397 — Florença, 1482), inserindo a América. Em 1474 escreveu uma carta, acompanhada de um mapa, ao seu correspondente português Fernão Martins, cónego da Sé de Lisboa, fazendo, através deste chegar a sua proposta ao Rei D. Afonso V. O seu projecto era, basicamente, o de navegar para ocidente e assim descobrir a Ásia pelo Oeste. O original desta carta nunca foi encontrado, mas sabe-se da sua existência pelo próprio Toscanelli, que depois a transcreveu e enviou a Cristóvão Colombo, a acompanhar a sua sugestão de viajar para Oeste para atingir a Ásia. Disponível em pt.wikipedia.org/wiki/Paolo_dal_Pozzo_Toscanelli e en.wikipedia.org/wiki/Paolo_dal_Pozzo_Toscanelli acesso em 12/10/2019.

     

    Os mapas aqui reproduzidos revelam a disparidade e a beleza das nossas representações e indagações do mundo, de suas finalidades e razões de ser, das disputas, necessidades e possibilidades que encerram essas razões e visões. Muitas vezes brutais, sem dúvida, como na cartografia da guerra e da injustiça, mas também muitas vezes cheias de esperança e poesia.

    Quantas vezes não resvalamos, quase sem perceber as transições e mesclas contraditórias, entre essas duas condições que gostaríamos opostas? Mas, no frigir dos dias, nem sempre se revelam assim, embora sempre se mostrem cheias de justificação. Mostram também o quanto nossa suposta familiaridade ou distanciamento de outros tempos pode nos manter ainda hoje diante de um mundo que pensamos conhecido e estável, mas que pode não ser como se nos apresenta.

    Isso nos remete à próxima imagem.

    Torres Garcia, mapa da América, 1943

     

    O terceiro mapa é um desenho do extraordinário artista uruguaio, Torres Garcia, seu conhecido mapa da América, de 1943 (abaixo), no qual afirmava: “O nosso Norte é o Sul”. No mapa anterior, meio milênio mais antigo, não havia inversão do norte; pelo contrário, sua orientação nos pareceria a habitual. Neste, Torres Garcia opera uma inversão das convenções aceitas.

    Sua questão não é cosmográfica e sua necessidade de explicar e interpretar o mundo não passa por uma condição transcendente. Sua atitude é claramente política, talvez sua devoção. Outros tempos, outras ideias sobre o mundo. O desenho, portanto, bem mais do que uma simples ilustração, é um manifesto sobre as condições culturais e sociais de nosso tempo, e das disputas em curso, que de lá para cá apenas se aprofundaram.

    É fácil imaginar, olhando de onde olhamos, familiarizados com as ilusões de uma história revista de frente para traz (do presente para o passado), que pareceriam sucederem-se em direção aos valores do mundo que imaginamos conhecer. Mas seria possível, e seria desejável se for possível, imaginá-los não como uma sucessão que nos alcança e nos explica no presente e na modernidade, mas como um rico acervo de indagações e experiências humanas que, cada um a seu modo, representa uma denúncia em relação ao outro, em suas motivações e certezas?

    Vistos em sua complexidade própria, cada um em seu tempo, poderíamos supor que, sem um olhar evolutivo, cada um poderia confrontar em algo todos os demais. Talvez, nenhum deles dê plenamente conta do mundo que representam, embora o façam plenamente em relação ao propósito pelo qual o representam. Ainda que possamos nos sentir mais ou menos próximos ou distantes deles, realizam-se de modo extraordinário nessa aventura em que existimos no mundo, na objetividade e no mistério da própria existência.

    Trata-se, como as três imagens deixam claro, de outros mundos, estranhos entre si. Não são apenas as referências geográficas que mudaram, nem apenas as convenções de representação e os conhecimentos técnicos e filosóficos, nem tampouco a percepção do belo e da sociabilidade, ou das implicações políticas, econômicas ou espirituais. Neles, foi a própria natureza do mundo mudou, e as questões que nos colocam já são outras.

    Porém, ainda que mudando os meios, as razões e modos de indagação, a necessidade de nos localizarmos significativamente na existência permanece. Esses mapas (sendo um deles uma reconstituição) e outras representações e testemunhos imersos em uma longa duração nos ajudam, juntos, não para o confronto entre esses tempos como se fossem uma sucessão para a modernidade ou para dotar a história de significado para o presente, o que questiono; mas, indo em uma direção totalmente diversa dessa, por sua diferença e riqueza, contribuem para o confronto e consciência de nosso próprio habitar o mundo.

     

     


    como citar:

    SANDEVILLE JR., Euler. “Três mapas do mundo. Mapa do Saltério (C. 1265), Mapa De Paolo Toscanelli (1474) e Nosso Norte é o Sul (1943)”. A Natureza e o Tempo (o Mundo), on line, São Paulo, 2016. Disponível em https://anaturezaeotempo.net.br/tres-mapas/ acesso em DIA/MÊS/ANO.

    [para citar este artigo conforme normas acadêmicas, copie e cole a referência acima (atualize dia, mês, ano da visita ao sítio)]

     

     

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    a natureza e o tempo (o mundo)
    um projeto de euler sandeville

    Foto Euler Sandeville, Folha, detalhe, 2009.
    Folha, detalhe. Foto de Euler Sandeville, 2009.

     

    um mundo ao acaso

    UM MUNDO AO ACASO
    Euler Sandeville Jr.
    versão inicial 07/01/2016. Última atualização: 16/02/2016
    notas no final da página

    para citar este artigo:
    SANDEVILLE JR., Euler. “Um mundo ao acaso”. A Natureza e o Tempo (o Mundo), on line, São Paulo, 16 de fevereiro de 2016.

    A natureza e o tempo. De que se trata?

    Caspar David Friedrich (1774-1840), Caminhante Sobre o Mar de Névoa. By Caspar David Friedrich – Web Gallery of Art, Public Domain [commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=1037098 acesso em 09/03/2016]

    1. tudo se move

    Vivemos em um mundo de incertezas. Nada está parado, toda informação deve ser substituída rapidamente. Representações de um mundo estático já não se sustentam. O norte, usado como metáfora para o obter um direcionamento – “você precisa de um norte” – já não é tão certo. O norte magnético, para onde as bússolas apontam, já foi um instrumento fundamental de navegação e orientação. Localizado pela primeira vez em 1831, deslocamentos são registrados desde 1904 a 15 km por ano, acelerando-se a partir de 1989, e atualmente pode estar deslocando-se cerca de 60 quilômetros por ano em direção à Rússia 1. Não apenas isso, não apenas o norte está em movimento.

    Ilustração feita pelo geógrafo Antonio Snider-Pellegrini, em 1858 (Opening of the Atlantic Ocean), ilustrando a justaposição das margens africana e americana do Oceano Atlântico, um precursor da Teoria da Deriva Continental. Disponível em pt.wikipedia.org/wiki/Deriva_continental acesso em 12/02/2016.

    Se fosse possível fixar o ponto absoluto Continuar lendo um mundo ao acaso

    mundus novus: apresentação

    OS TEMPOS E OS MUNDOS: SOBRE A ANTIGUIDADE DOS MUNDOS

    A LONGA ANTIGUIDADE DOS MUNDOS IV
    MUNDUS NOVUS [1] (1055 a 1749)
    A Longa Idade Média e a nova antiguidade
    A invenção da Europa. Do sobrenatural à natureza.

    O globo terrestre.

    Euler Sandeville Jr.

    Pesquisar é indagar a existência.
    φύσις κόσμος αίων κρόνος καιρός
    este mundo está em guerra, embora muitos de nós desejem a paz

    como citar:
    SANDEVILLE JR., Euler. “Mundus Novus (C. 1055 a 1749)“. A Natureza e o Tempo (o Mundo), on line, São Paulo, 2016-2018.

    Como imagens nesta abertura desta seção, ofereço-lhes três cenas. São cenas de almoço muito sofisticadas, reproduzidas abaixo, onde a refeição é tanto ordem social quanto é inserida em uma ordem cósmica ou do destino humano.

    Como você poderá verificar, esses almoços não são em nada comparáveis, nem na finalidade, enredo, técnica e suporte, contexto social. As datas de realização abrem e fecham o quatrocentos, o que obviamente não dá conta da complexidade das relações sociais e do imaginário dessa “Longa Idade Média” ou “Era Moderna”, mas é suficiente para ilustrar que ambas indicam temporalidades ampliadas para muito antes e depois da data estrita de sua criação.

    A primeira, dos irmãos Limbourg (Herman, Paul, e Jean, todos falecidos com menos de 30 anos em 1416, juntamente com Jean de Berry) integra o extraordinário Les très riches heures du duc de Berry (literalmente, As muito ricas horas do Duque Jean de Berry). O Duque (1340-1416) era filho do rei João II e irmão de Carlos V da França, de Luis I de Nápoles (Duque de Anjou, 1339-1384) e de Filipe II (Duque de Borgonha, 1342-1404). Depois dos irmãos Limbourg trabalharam também no livro Jean Colombe (1430-1493) e possivelmente Barthélemy van Eyck (c. 1420-posterior a 1470).

    Frères de Limbourg, Les très riches heures du duc de Berry, mês de janeiro, museu Condé, Chantilly, ms.65, f.1v, c. 1411-1416.
    This is a faithful photographic reproduction of a two-dimensional, public domain work of art. The work of art itself is in the public domain for the following reason: This work is in the public domain in its country of origin and other countries and areas where the copyright term is the author’s life plus 100 years or less. Disponível em commons.wikimedia.org/wiki/File:Les_Tr%C3%A8s_Riches_Heures_du_duc_de_Berry_Janvier.jpg acesso em 14/03/2016.

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