FOTO DE JORNAL
Euler Sandeville
Dezembro de 2003; Maio de 2017
Uma última brisa da tarde fazendo-se noite, já mais fria, atravessou a sala. Seu olhar, pontuando os velhos móveis com enfeites de louça e o assoalho de madeira, se esparramava distraído até a janela, esquecendo-se do dia que passava. Embebida na luz vermelho-azulada repousante da fronteira entre o dia e a noite, a brisa fazia tremular as cortinas, aumentando o efeito quase hipnótico de seu devaneio.
A janela era mais como um portal para muitos dos momentos já vividos. Entretido com essas visões, sentia-se como se estivesse repentinamente nos umbrais de muitos tempos e pudesse escolher visitá-los aleatoriamente. Deixou a foto cair da mão, levemente adormecido pela intensidade da luz, como se devolvesse à cidade sua memória perdida.
Sim, deixou a foto cair da mão, levemente adormecido pela intensidade da luz, como se devolvesse à cidade sua memória perdida.
As fachadas cegas e velhas dos prédios, os telhados das casas espremidas no chão, tinham sempre uma poesia nova à luz de cada entardecer. Entrando por um ou outro portal desses que se lhe ofereciam, via ao longo dos anos as senhoras nas ruas voltando da padaria com o pão para o lanche da tarde.
Em sua memória, como se fora hoje, atravessando o portão entreaberto, bem cedo o leiteiro deixava a garrafa de leite na soleira da porta.
Duas quadras abaixo, o bonde virando como sempre a esquina, anunciava o início de sua jornada de trabalho, e o capturava em seu ritmo cadenciado subindo em direção ao centro, no cruzamento das avenidas da qual haviam cortado as árvores para alargar-lhes o leito carroçável, onde haviam acabado de implantar um semáforo, desses que cada vez mais paravam os cruzamentos da cidade, celebrado com buzinas impacientes no horário de fim de expediente, quando a maior parte da cidade queria voltar para casa e ele, já com o por do sol, com o jornal da manhã em baixo do braço, atravessava de volta o portão sempre entreaberto.
Um pouco antes, quando criança, através do vidro tingido com as cores intensas do entardecer da sala, via a sua mãe abrir a porta e pegar o litro de leite. Depois do café, e de um ou outro pequeno afazer, ele atravessava o portão entreaberto, como permaneceria por anos até que, já com os filhos casados, teria de erguer o muro e colocar um portão de grades alto.
Naqueles tempos já tardios, corria descalço com os meninos da rua e, após outra travessura com as campainhas, dobrava a esquina depois da alfaiataria do seu Antônio despencando com as bananeiras barranco abaixo até o riacho… Sim, o riacho, nem lembrava mais dele, mas a chuva insistente escorrendo no vidro da janela o trouxe de volta a esse lugar recôndito em seu ser.
A avenida larga, depois da terraplanagem dos desníveis e da retificação do velho riacho, exibindo seus prédios modernos envidraçados de baixo até em cima, como se não houvesse como entrar nem sair, substituíra já havia algumas décadas o fundo das casas dando para a ribeira… Pensando bem… como era mesmo o riacho?
A idade havia lhe roubado a disposição e parte de seus dias era arrastada entre o passeio da manhã até o banco e uma eventual descida até a portaria, pouco antes das pessoas voltarem do trabalho, só para vê-las caminhando. No mais se deixava cair numa das poltronas que tinham vindo da velha casa, olhando a sala onde seus filhos brincaram até se tornarem tão eventuais como são as lembranças que a janela lhe trazia. A sala empoeirada ao longo da semana, entre uma visita e outra da faxineira, e tão movimentada por lembranças diáfanas, era agitada apenas quando seus filhos, com as esposas, voltavam trazendo-lhe os netos do interior para alguma visita ou para resolver algum assunto na cidade.
Quando foram embora, uma agitação interna apoderou-se dele. Quatrocentos e cinqüenta anos, foi quase ontem quando comemoramos o centenário… Pegou o velho jornal e lá estava ela. Na primeira página! Aquela esquina que tantas vezes retratou com sua máquina fotográfica. Tão bela, tão linda como no dia em que a vira ainda na rua e lhe intuíra o ângulo mágico. Sua esposa, ainda uma moça que lhe chamou a atenção ao cruzar a esquina com olhares de soslaio, a pele ainda macia e o sorriso ingênuo na foto. Onde se pode revelar esses negativos hoje? Essa esquina nunca se desfez em sua alma. Anos depois, já casado, fotografou-a para o jornal.
Vendo-a ali na velha página para ilustrar a cidade que se desfez tantas vezes, ninguém suspeita a vida por trás das fotos, as hesitações sem tempo de quem a viu primeiro, de quem a encontrou na angulação exata e a fixou para o futuro. Suas fotos rodaram mundo em jornais e revistas, sem que jamais houvesse saído do Estado de São Paulo. Curioso, conhecia apenas por fotos outros Estados e países que, como as suas, viajavam impressas e nunca se dera conta até então de que ignorava os olhos que, depois dele e dos colegas no jornal, as viam primeiro.
Alisou a foto lentamente com a mão, como ainda ontem alisara o rosto que partia deixando-o diante de seu próprio destino. Ia agora, mas deixava uma vida tatuada no coração e na mente, umedecida nos olhos silenciosos. Restava-lhe atravessar as fronteiras de todos os tempos, como agora lhe era permitido.
Caminhava, vindo da Praça Clóvis onde descera do ônibus, por entre a multidão de pessoas e carros estacionados na Sé. Mudou de ideia, finalmente, haveria de resolver as questões pendentes. Entraria no edifício Santa Helena e conversaria finalmente sobre aqueles assuntos que tanto constrangimento causaram entre ele e seu irmão. Olhou para a Catedral em obras desde que se lembrava, eternamente em construção, como que a tomar coragem, grande como a metrópole que jamais fica pronta. Modernistas! E dizer que remara com os filhos já crescidos no Tietê. Ninguém acreditava, essas memórias de velho não são confiáveis mesmo. O que é isso, onde já se viu, remar no Tietê com o Luizinho, dizia a moça da padaria logo embaixo; esse velho tem cada estória para a gente, dizia com sorriso condescendente.
Como era mesmo o Tietê? Luto com a memória, e como na neblina da manhã não distingo bem as formas dos diversos tempos. Até eu mesmo duvido de tê-lo visto serpenteando, como um Garrincha driblando a cidade, tentando retardar o momento inevitável de deixar de ser rio. E que rio! As fotos! Que bom que as tenho, sem elas não poderia nem mais imaginar que não tenha sido sempre assim, mesmo tendo visto toda sua saga. Mas de onde me vem essa nostalgia; nostalgia de que mesmo?
Viveu mais do que muitos dos espaços que ajudou a registrar para outras gerações, cujas formas e modos de ser encontramos agora apenas em livros, servindo de ilustração para seus artigos, sem imaginar que já estiveram vivas essas fotos que não cabem nesses exercícios da escrita. O tempo se dissolve resolutamente, deixando suas marcas e pistas na matéria. Viveu mais do que as florestas que ainda vira pelo interior do Estado. Cada vez mais rapidamente somem as lembranças da cidade. Paisagens que se fecham nos olhos que se vão todos os dias, paisagens que se formam para olhos que se abrem todos os dias, e um dia verão o que hoje ainda não sabemos sequer imaginar.
Tinha a impressão de lembrar-me das quadras arrasadas, quando demoliram os quarteirões da velha Sé. Mas poderia não ser lembrança, era ainda muito pequeno e meu pai muitas vezes me contara de quando chegamos a São Paulo. Ele contava como atravessava com dificuldade as obras para voltar para casa (tinha apenas dois anos, não era memória minha com certeza). Bati na porta e um cheiro de mofo dos velhos livros empilhados contra a parede antecipava minha espera no corredor. Logo meu irmão atendeu e, após breve hesitação, sorriamos novamente um para o outro como de costume, até gargalhar. Coisa de irmãos, coisa á toa, meu irmão abre a porta e entro ouvindo sua voz esmaecendo no ar do meu apartamento seu rosto e deixando estampado na parede onde ainda tenho a cristaleira seu sorriso, até ir embora com as outras lembranças.
Que saudades sinto desses tempos, meus pais, meu irmão, as outras crianças da rua, meus amigos de faculdade e depois no jornal, o pêndulo diário no bonde e o almoço por décadas nos mesmos restaurantes, as lojas, o primeiro encontro, o casamento, o primeiro filho, a… Olhando por esta sala, meus pensamentos perdem-se na vidraça da janela, e uma vez mais desejo olhar na cidade que é a cidade que se foi… Nos móveis que ficam, as luzes de um passado que se foi rápido, e ao mesmo tempo, jamais se vai, como se fosse tudo o que existe…
Ele olhou para os jornais não lidos da semana, que já não traziam suas fotos. Folheou aleatoriamente um e outro, sem prestar atenção nas letras, apenas nas imagens. Nunca havia se dado conta das estórias que contam. Passadas em revista, são tão eloquentes, denunciando as feridas da cidade e as feridas que a cidade faz em sua gente. Bem conhecia os truques e exigências da editoração, e sorria para as fotos novas como velhas conhecidas de outros tempos. Mas preferiu olhar apenas as fotos em branco e preto, sedutoras como as mulheres em sua juventude, sedutoras como a jovem que um dia lhe arrebatara pelo olhar o coração ao virar a esquina, e deixar-se consumir nessa lembrança de edição comemorativa. Nem abriu o volume, para não ver as outras fotos, de todos os tempos, sobretudo as do presente.
Caminhou por entre os sofás até uma velha cômoda no canto da sala e retirou da gaveta uma caixa cheia de velhas fotos de família e de lugares. Tomou a foto de seu irmão, feita mais ou menos naqueles dias em que fora visitá-lo, alguns anos antes do acidente e sentou-se rememorando. Uma última brisa do dia atravessou a janela. Aproximou-se da janela e deixou cair a caixa espalhando no ar noturno as fotos, preenchendo a sala um cheiro das coisas há muito guardadas, como se devolvesse à cidade seus tempos e suas pessoas.
Cerrou os olhos para virar notícia: ontem, em sua casa na liberdade, aos 95 anos…