repovoando o presente

repovoando o presente
Euler Sandeville Jr
11 de outubro de 2017

Há muitas coisas que guardamos no coração. Podem ser despertadas por um olhar, um sorriso, um dia de chuva, um gesto imaginado.

Tentei agarrar algumas dessas memórias-sentimentos. Parece que se dissolvem pelas frestas dos olhos, não sem antes assumirem por breve momento muitas formas e sabores. Mas havia um substrato sob todas elas, difícil de lembrar, impossível de evitar. Era eu mesmo, o tempo que passa, o tempo que existimos.

Como uma chama tremulando, dançando com as sombras que projeta no quarto iluminado pela vela… Por um faixo de luz da lua, animando minha imaginação… A noite estrelada para além da janela: penetra uma suave brisa quente de verão.

Minha esposa abre a porta, entra, olha em meu olho, compreende. Um sorriso, um abraço. O momento está dito. Não que saibamos tudo dele, acho mesmo que sabemos apenas um pouco. Mas é tudo o que podemos saber, que precisamos saber, partilhar os segredos de duas vidas.

As contradições já não importam, não porque não existam, mas porque existe no olhar aquela miríade de sentidos que prescindem das palavras. Não, não descortinamos tudo. Também não desabitamos o passado, mas povoamos o presente.

Troco a água ardente das lembranças e das ramificações entrelaçadas da vida pela metáfora de um sabor de uva natural. No início, não sem esforço e escolha, decisão. Aos poucos, novos sabores se descortinam. O paladar percebe o quão distante da suavidade havia se escondido no imediato da intensidade. Sei as dores agarradas na fina camada de pele que como um diafragma incandesce meu olhar com a intensidade dos sentimentos vividos e conheço até as forças que dilaceram tatuando a alma.

Felizmente, sei a alegria nova que descortino na comunhão do Altíssimo; vejo-me tomando forma quando a alma repousa Nele. Por pouco não me contentei no caminho tateante em que me comprazia na angústia dos impossíveis e intocáveis, a impossibilidade da consistência de mim mesmo como quem lança uma garrafa esvaziada e sem rolha ao mar, com um pedido de socorro a ninguém que não à intensidade do gesto.

De fato é um milagre tomar forma quando havia me emaranhado na ausência de forma dos mais profundos lugares da mente e do coração que explorei no desespero ou na ausência. Como é bom tocar a paz, a alegria, a comunhão em oração e fé, e ser renovado suavemente, ter iluminado recônditos que temia olhar e aos poucos ter que haver-me com abertura para transformação.

Tocar o vivido, povoado de ilusões e bons sentimentos, povoado sim de dores, algumas que não têm forma e que assumindo qualquer forma parecem nos roubar toda estruturação. Tocar os bons sentimentos que resistem, e revivem, e emergem em qualquer cena de esperança e descoberta, fazendo extrair dos olhos um vislumbre aquoso do coração. Às vezes, umedecem contra a vontade, querendo ser invisíveis, às vezes são engolidas já na garganta e não alcançam os olhos.

A onda do mar vai e volta sobre a praia, revolve a areia, mostra verdes e azuis atravessada por raios de sol.

À distância, o abraço da floresta derramando-se sobre as pedras, a tartaruga emergindo no canto. Para além desse refúgio, que tem a escala do corpo e da distância de um horizonte ondulante e tranquilo, repousa o mistério terrível das profundidades e o caminho inevitável da superfície navegável pelos olhos inquietos. Vida. O transformar-se do pássaro em céu e a mente em repouso contempla o passar do dia e da noite, a dança do sol na linha do horizonte indo a um canto ao nordeste-noroeste e depois voltando a sudeste-sudoeste, repetindo o caminho ao longo dos anos, dia a dia reinventando o poente e as cores do nascente. Pequenas criaturas, pássaros, todas as formas vivas e o horizonte, todos extasiam como uma harmonia, como uma melodia cheia de sabedoria e verdade, ritmos que se repetem sem nunca serem os mesmos ou iguais.

Aprendo. De fato, estou aprendendo. E muito.

TocToc Pequeno, foto de Euler Sandeville, 2011

Deixe um comentário

Faça o login usando um destes métodos para comentar:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s