as almas à tona; que direito teria de contemplá-las ou delas desviar os olhos?

as almas à tona; que direito teria de contemplá-las ou delas desviar os olhos?
Euler Sandeville Jr.
Junho de 2017

Hoje vi algo que não esperava. Como um jogo em que não tem como os jogadores avançarem, porque não podem se desprender do que são; as regras, que os ultrapassam, foram tensionadas ao limite da possibilidade de solução. Qual a coisa certa a dizer? Como escolher um caminho quando tantas dores estão pontuadas nas buscas de esperança e sentido tão intensamente entre os caminhantes? Dores que são deles, dores que são de uma época, e por que não, também minhas, entremeadas nas alegrias e recusas que todo caminho traz e sugere e que, por um acaso que não compreendo, colocou todos juntos em um momento passageiro. Já não se trata de intelecção dos impasses de uma época. Entendê-la já não ajuda, se o que se descortina já não é a época, mas o íntimo dos caminhantes.

Como pensar em um momento de inflexão? Um lugar em que nunca se esteve? Como se, havendo caminhado longamente, extenuadamente, se chegasse ao ponto de partida, e já não é o mesmo. A bagagem pesada da qual me desvencilho deixa suas marcas ao redor, na minha memória, no meu presente, nas entranhas tatuadas do coração com os sentidos da existência, dos descaminhos avidamente percorridos, dos sonhos e devaneios, dos afetos em profusão. A experiência não serve para entender o ponto exato de onde descortino as escolhas que devo fazer. Como agir recusando a incompreensão em ambientes de intransigência do outro com o outro? Como não negar a compreensão que tenho ao confrontar dilemas que não são meus mas para cuja solução devo me ver diante? Chego a achar que seria melhor não compreender nada, porque compreender não é suficiente diante do concreto profundo de cada ser.

Meu coração palpita diante das dores de um tempo em que existo. Não há como camuflar os impasses que habitam as narrativas, as sinceras, porque não são apenas narrativas e nem sempre são sinceras, quando são conscientes. Nesse emaranhado de contradições devo tomar decisões que afetam outras pessoas. Nossas decisões sempre afetam outras pessoas. Que responsabilidade. Que entranhamento no mundo. Entender não ajuda, quando não transforma. Porque miríades de partidas são jogadas simultaneamente e seus resultados parecem oscilar com ardente desejo entre a anulação e o impasse. Do que sei, engastado no que não sei, emerge o peso que é reparti-lo tanto quanto a contradição de silenciar. A dificuldade do que sabemos no que não sabemos está mergulhada nas agruras profundas do presente. Queria pensar o mundo, mas eu me deparei com as almas. Que direito eu tenho de vê-las?

Não esperava vê-las para além das ideias em conflito. As almas são quentes, aturdidas em suas próprias vozes contradições e desejos, silentes ou alucinantes para os limites que de dentro as ferem, porque são afetivas; demandam afeto e resposta que toque esses enredos vividos na intensidade de cada um, na busca de alegria e coerência, e então exalam a sinceridade mais profunda trancafiada em seus pensamentos. Que direito eu tenho de vê-los? O que posso fazer por elas, se posso? Uma coisa é falar das ideias, outra é ver para além dos olhos. Por que vê-las, se não as posso ajudar? Se para além das discordâncias em que se encontram não só nos espaços comuns, mas também nos íntimos, residem impasses existenciais de uma época, mas que são absolutamente concretos na miríade de caminhos que se entrelaçam em cada um sem poderem convergir?

Tudo depende do momento em que se vê. Bem sei disso. Mas vi pesos que são habitados, não compreendidos. E se me pergunto se tenho o direito de ver o que não procurava, devo perguntar-me também se tenho o direito de furtar-me ao que me dizem, sabendo ou não que estão a fazê-lo. Tenho o direito de não querer ver no cristalino dos olhos a densidade dos desejos e das buscas, quando por alguma razão elas se mostram? As faces contam as coisas, e as vão inscrevendo nos tons da pele, nas suas formas, nas suas rugas, nos seus movimentos luminosos e vibrantes tanto quanto invisíveis. É como se fossem concretas, palpáveis, como se pudesse sentir a miríade de sons e vozes que exalam. Não sei ainda como traduzir isso, como abraçar isso, como colocar isso em um espaço comum num momento em que emergem e, sobretudo, como lhes transmitir algum afeto em meio ao que aflora para além do que se narra.

Quem sou eu para ver, quem sou eu para fechar os olhos? Já não me inquietam o bastante as minhas lutas? E como! Como então, ainda tocar a intimidade velada e impronunciável, carreada em vozes tão intensas, quando ainda dialogo e desvelo as minhas próprias na construção do caminho em que sigo com a alma toda posta na fé?

Estou vendo coisas que não tinha visto antes, e estou vendo de uma forma que não tinha visto antes. Almas tão povoadas… nos desencontros do tempo que nos é dado coexistir. No fim, precisamos de coisas simples, vivendo em uma época nada simples.

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