NATUREZA E ARTIFÍCIO: O IMAGINÁRIO, AS REPRESENTAÇÕES E AS PRÁTICAS
resumo
As representações – e toda representação mobiliza um imaginário, nem sempre um ícone (a confusão e distinção entre os termos permanece movediça, todo imaginário é uma dimensão da representação) – são uma condição mental nas quais se constroem os mundos (histórica e subjetivamente). Estão presentes (as representações, imaginário, o simbólico, a ideologia, termos que comumente se sobrepõem) tanto no fazer quanto na subjetividade como condições indissociáveis, ainda quando a indagação intelectual os dissocie para tornar inteligível e comunicável o pensar sobre. Isto é, ocultam-se e perdem-se, revelam-se desvelam-se, no comportamento, nos (des)afetos, e na produção de artefatos, objetos, cidades, obras de arte (por exemplo, a música, a pintura). Não se esgotam em sua materialidade (o que é claro nas artes), nem sua linguagem é a materialidade, mas é o modo de habitar criativamente sua materialidade, na elaboração, na recepção, no registro do que deva ser. Nesse sentido, o imaginário, a ideologia, a ciência, são formas nada estanques de representação. Do mundo, do estar no mundo, do mundo em que se reconhece estar. É sim poética, trágica, em vias de tornar-se liminar e na tensão de tornar-se residente, conservação que entretanto a simples existência já implica em transformação.
como citar:
SANDEVILLE JR., Euler. Natureza e artifício: o imaginário e as representações e as práticas. A Natureza e o Tempo (o Mundo), on line, São Paulo, 2020.
Este texto foi escrito como um subsídio sintético a conteúdos do site e para alunos das disciplinas com essa temática. Como a temática das representações é um eixo condutor desses trabalhos, a primeira coisa a se distinguir é que o modo como emprego representação aqui vai bem além da representação como imagem, figura, ideologia ou imaginário. A ideia de representação as inclui em toda a sua densidade antropológica, intersubjetiva e social, mas também inclui a materialidade do espaço em que necessariamente se realizam as práticas humanas (o termo espaço é tratado, com algumas observações, no sentido dado por Mílton Santos 1985, 2002, aqui trazido ao campo das representações). O sentido primeiro que dou a representações e que emprego geralmente esse termo remonta ao campo das visões de mundo, com a sua implicação dialética de valores e práticas decorrentes.
As representações, o imaginário, o simbólico, a ideologia, as práticas, são termos que, obviamente não significando a mesma coisa, estabelecem inúmeras sobreposições e sombreamentos entre eles, permanecendo a distinção entre esses termos tendendo a campos movediços. Condição rica da linguagem, minimizada quando se deseja aprisionar esses campos de significados em conceitos rígidos, por vezes tão necessários ao pensamento sobre o mundo. Essa riqueza da linguagem, por outro lado, ao invés de ser um problema de método ou apenas uma fragilidade conceitual, é uma potência significativa, já que emergem tanto do fazer quanto da subjetividade como condições indissociáveis, tanto do pessoal quanto do coletivo, do privado tanto quanto do público, em que se insere nossa capacidade de pensar sobre o mundo (pares que já são em si representações com amplos espaços transicionais), ainda quando a indagação intelectual os dissocie para tornar inteligível e comunicável o pensar sobre.
Uma discussão que acho interessante sobre representação e imaginário é trazida por Jacques Le Goff em O imaginário medieval (1994). No entanto, as representações são aqui entendidas na forma mais ampla, implicando tanto o imaginário quanto a ideologia, coisas bem distintas mas não estanques. Embora o imaginário seja um campo bastante atraente, não pode ser pensado desvinculado das práticas sociais no tempoespaço em que dialoga. Por outro lado, certas tradições entenderam as representações sociais como ideologia e dominação, o que me parece extremamente reducionista.
As representações estão além da ideologia, implicam em uma condição humana muito mais ampla e aberta. No entanto, a ideologia as disputa. A ideologia é aqui entendida como uma manipulação restritiva e reducionista das representações e valores (não deixando de ser ideologia a que se pretende contra-ideologia), dominando sua validação para um propósito específico potencialmente capaz de mobilizar e direcionar desejos, atitudes, ações. Basicamente, seu fim é a manutenção ou a conquista do poder, mas para isso atravessa o cotidiano ou estabelece diálogos com ele pela limitação da linguagem e instrumentalização das representações. A ideologia é a redução do mundo possível a uma ordem instrumentalizada para o poder ou a identificação que resulte em ação direcionada, potencialmente acrítica mesmo que reativa.
Por essa razão, ainda que seu campo seja o da disputa pelo poder, seu controle se dá na formatação e limitação da percepção crítica e investigativa do mundo, propondo um mundo onde os acontecimentos não importam, já estão classificados a priori e o sujeito ou grupo sabe, de antemão portanto, como reagir, fechando sua adesão acrítica de si e do grupo em antagonismo ao que se opõe. No entanto, a ideologia não pode também ser colocada em uma perspectiva moral apenas, são fenômenos sociais complexos em disputa (remeto a John B. Thompson em Ideologia e cultura moderna. Teoria social crítica na era dos meios de comunicação de massa. [1990]).
As representações estão em um campo de significados, desejos e ações muito mais amplo e impreciso, aberto, mesmo quando disputadas pela ideologia ou alimentadas pelo imaginário. As representações são entendidas como visões de mundo, em todo o seu campo necessariamente amplo e difuso também, com sua complexidade poética, existencial e de mobilização e constituição de práticas, significados e valores, na sua contribuição e interatividade na configuração histórica do ambiente social e espacial em que se dão. As representações – e toda representação pode apoiar-se, mobilizar e transformar um imaginário – são uma condição mental nas quais se constroem os significados dos mundos, histórica e subjetivamente, mas também material e comportamental.
Ao contrário da ideologia, que se expõe para disputar ainda que sua complexidade precise ser inquirida em um campo complexo, as representações, como o imaginário, ocultam-se e perdem-se em dimensões que ultrapassam a narratividade e incluem possibilidades poéticas entranhadas de modo que apenas em parte revelam-se e desvelam-se no comportamento, nos (des)afetos, e na produção de artefatos, objetos, cidades, obras de arte (por exemplo, a música, a pintura), hábitos, costumes, valores, ideologias e suas narrativas em disputa. Não se esgotam em sua materialidade (o que é claro nas artes), mas não existem sem ela ou alheias a ela. Trata-se do modo de habitar criativamente sua materialidade, na elaboração, na recepção, no registro e reinvenção do que deva ser sempre em processo, sempre em múltiplas temporalidades e espacialidades inter-relacionadas; sempre que, ocultando-se, revelam-se um pouco; sempre que revelando-se, ocultam-se outro tanto.
Daí também a expressão das paisagens como representação não se reduz nem à sua forma nem à imagem, que são importantes sem dúvida; é necessário entendê-las como experiências partilhadas e vivenciadas, reunindo práticas e valores com suas contradições, como construção social decorrente da interação do trabalho e da cultura humana na transformação contínua do ambiente (Euler Sandeville Jr., 2004, 2005, 2013; Ulpiano Bezerra de Menezes 2002).
Nesse sentido, o imaginário, a ideologia, a ciência, são formas nada estanques de representação do mundo, do estar no mundo, do/no mundo em que se reconhece estar. São visões de mundo em contradição ou afinidade, poéticas, trágicas, sociais, transgeracionais, interpessoais, subjetivas, espaço-temporais, concretizando-se no mundo da existência e das obras e formas do trabalho e do convívio humano. Do mesmo modo que a sociedade sem a construção de seu espaço ou as sem as relações de produção mas também seus valores seria uma abstração discursiva, a sociedade esvaziada de suas representações e imaginário resulta esvaziada de significado. Portanto, abrigam potências e contradições poderosas e embrenhadas entre si, que em certas circunstâncias coletivas mostram-se em vias de tornarem-se liminar, exatamente quando são menos compreendidas na imersão em sua tensão em que atuamos nelas e sobre elas, colocando-as em passado em várias camadas temporais e em devir: conservação que a simples existência já implica em transformação.
REFERÊNCIAS CITADAS
LE GOFF, Jacques. Prefácio à 1a edição de O imaginário medieval. Trad. Manuel Ruas. Portugal: Estampa, 1994 pg 11 a 30.
MENEZES, Ulpiano Bezerra de. A paisagem como fato cultural. in YÁZIGI, Eduardo (org). Turismo e Paisagem. São Paulo, Contexto, 2002, pg. 65 a 82
SANDEVILLE JR., Euler. Paisagens e métodos. Algumas contribuições para elaboração de roteiros de estudo da paisagem intra-urbana. São Paulo: Paisagens em Debate n. 2, 2004.
SANDEVILLE JR., Euler. Paisagem. São Paulo: Paisagem e Ambiente n. 20, 2005, pg. 47-59.
SANDEVILLE JR., Euler. Paisagens partilhadas. São Paulo: Paisagem e Ambiente, 30 (2012), 2013, p. 205-214
SANTOS, Milton. A Natureza do Espaço: Técnica e tempo, razão e emoção. São Paulo, EDUSP, 2002.
SANTOS, Milton. Espaço & Método. São Paulo, Nobel, 1985.
THOMPSON, John B. Ideologia e cultura moderna. Teoria social crítica na era dos meios de comunicação de massa. Trad. Grupo de Estudos sobre Ideologia, Comunicação e Representações Sociais da Pós-Graduação do Instituto de Psico,ogia da PUCRS; 9a. ed.Petrópolis, RJ: Vozes, 2011 [1990]
como citar:
SANDEVILLE JR., Euler. Natureza e artifício: o imaginário e as representações e as práticas. A Natureza e o Tempo (o Mundo), on line, São Paulo, 2020.
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