O BISÃO NA CAVERNA (A AURORA NA NEBLINA – ARTEFATOS E ARTIFÍCIOS)
Euler Sandeville Jr.
nova versão 16/06/20171
como citar:
SANDEVILLE JR., Euler. “O bisão na caverna (artefatos e artifícios)“. Ensino e Pesquisa, A Natureza e o Tempo (o Mundo), on line, São Paulo, 2017.

Nesta seção entramos, pela imaginação estimulada por uma informação arduamente construída, na aurora nebulosa dos tempos. É um “lugar” sem respostas finais. A neblina através da qual procuramos entrever esse passado, imenso e longínquo, permanece obscurecendo nossos conhecimentos e certezas. Daí o título desta primeira seção, “A Aurora na Neblina”. É, como parece ser, poético.
Toda discussão sobre as origens tem em seu fundo o questionamento de como viemos a existir, e de como chegamos a ser como somos; no limite, coloca-se qual o sentido – ou ausência de sentido -, de nossa existência. Mas, aqui, reconhecendo essa dimensão das narrativas sobre a(s) origem(ns), o que se busca não é uma indagação ontológica ou existencial da nossa origem. Essa indagação deve ser construída a cada momento, não em um passado que se perdeu da memória senão em fragmentos tênues que nos chegam.

A explicação científica atual para a origem da existência estabelece uma epopeia de acasos de 13,3 bilhões de anos, onde em alguma localização imprecisa, muito mais recentemente, a 5 bilhões de anos, teria começado a se formar o que uma espécie por demais afeita às narrativas e explicações chama de “planeta Terra”. Ainda muito mais recentemente, algo entre 4 milhões e 250 mil anos teríamos o surgimento de um ser que consideramos singular, o gênero Homo.
Nessas distâncias infinitas, povoadas de restos de rochas, lascas de pedra, e artefatos rudimentares, entremeada ali e acolá por realizações elaboradíssimas, parece que nosso conhecimento científico sobre a origem do homem e sua organização social e cultural está envolto em uma bruma de suposições, em que nos movemos como que tateando. Isso vale até para períodos bem mais recentes como o Holoceno (a partir de 8.000 a.C. e nele a História a partir da escrita, como se convencionou definir), onde agora, praticamente ontem, imaginamos recortar um Antropoceno.
Em alguns casos, esse grau de suposição sobre os vestígios do passado é perturbador. Você olha um bisão pintado no fundo de uma caverna. Não sabe nada sobre ele, sobre quem o fez, em que circunstância, o que já tinha feito antes, de onde veio, como viviam. E conclui o que? Que é um bisão pintado por um homem a milhares de anos atrás e que não se faz a menor ideia de seu significado e explicação? Isso é insuficiente, talvez até frustrante, porque seu inesperado reaparecimento desse modo resultaria aleatório, ficaria sem resposta e sem possibilidade de significação. Sobretudo, se no local são encontradas lascas de pedra e se data o surpreendente acervo, após longas polêmicas de alguns anos, em milhares de anos.

O que está acontecendo é que torna-se necessário reinseri-lo no mundo, no nosso mundo das universidades e das narrativas, o que é também um modo de reinserir o nosso mundo em uma longa temporalidade, na qual a voz do desconhecido ecoa a nossa. De modo que, usando um conjunto de certezas estranhas ao fato e sem fundamentação efetiva, se não talvez na arriscada comparação com sociedades tidas como “primitivas”, e na perspectiva civilizatória de uma evolução biológica, urbana e técnica, chega-se à notável conclusão cabal sobre o que é (o que foi) esse bisão elaboradíssimo (sem paralelo nessas sociedades):
Escondidas nas entranhas da Terra, fora do alcance de eventuais intrusos, estas imagens devem ter obedecido a um propósito muito mais sério que o simples gosto de decorar. De facto, parece não haver dúvida de que foram executadas para servir um rito mágico destinado, talvez, a assegurar o êxito na caça. (…) Ao que parece o Homem do Paleolítico não estabelecia uma visão nítida entre as imagens e a realidade. Ao representar esses animais pretendia tê-los à sua mercê, e ao “matá-los” na imagem acreditava ter matado o sopro vital dos animais em si2.
Ou como notável historiador da cidade, Lewis Munford, observa na mesma linha, mas com mais imaginação, concedendo a esses antepassados distantes algum prazer:
Nesses antigos santuários paleolíticos, como nos primeiros túmulos e montes sepulcrais, encontramos, se existem, os primeiros indícios de vida cívica, provavelmente muito antes de poder sequer suspeitar-se de qualquer agrupamento permanente em aldeias. Não se tratava de um mero ajuntamento por ocasião do acasalamento, ou de um regresso provocado pela fome a uma fonte segura de água ou alimento, ou de um ocasional escambo, em determinado ponto convenientemente protegido por um tabu, de âmbar, sal, jade ou mesmo, talvez, instrumentos prontos. Ali no centro cerimonial verificava-se uma associação dedicada a uma vida mais abundante; não simplesmente um aumento de alimentos, mas um aumento do prazer social, graças a uma utilização mais completa da fantasia simbolizada e da arte, (…)3

São ruins essas hipóteses? Não, claro que não. São tão boas ou ruins quanto qualquer outra, mas tornam-se verdade pela repetição, pelo silêncio incômodo em que se abrigam do nosso mundo ordenado. Estamos diante do desconcerto (que ainda é sedutor) de que nossa existência nos escapa à compreensão. E de que as explicações ainda estão permeadas de suposições. Tais como tenham sido, nós os perdemos. E, no entanto, são tão elaboradas e cativantes suas possibilidades para nós.
1. o que se pode fazer em 3 minutos de um dia
Para compreendermos da imensidão em que se perde essa aurora, e a intensidade da neblina em que a origem do homem mergulha, representar o tempo como uma escala, uma duração, pode ajudar. Quão longa foi essa aurora? Pensemos nas datações científicas, mesmo que não sejam consensuais. Mas adotemos uma duração temporal qualquer, apenas para dar uma ordem de grandeza.
Se pensarmos tão somente nos últimos 100.000 anos, que com maior evidência marcam a presença da espécie Homo sapiens, ainda que as diversas espécies sejam datadas muito anteriormente, teremos uma paradoxal noção de nossa brevidade. Não há qualquer significação nessa escolha de 100 mil anos, além de arredondar para menos e a um “número redondo” o Pleistoceno Superior. Paradoxal porque 100 mil anos são mais do que podemos imaginar, e ainda assim, reinserido-os na escala geológica por um lado, e por outro lado reinserindo nele o que chamamos de história, poderemos ter a dimensão assombrosa da brevidade de tudo o que julgamos conhecer.
Usando o artifício da “linha de tempo”, estabelecemos uma proporção entre 100.000 anos e a duração de um dia, para visualizar melhor, em uma escala proporcional a sua duração. Teríamos o período chamado como história, 6.000 anos, como apenas a última hora e meia desse intenso dia! Imagine se adotássemos o tempo geológico da Terra, sequer poderíamos representar o que chamamos de história.
Nessa hora e pouco (100.000:6.000) encontraríamos toda a chamada civilização, desde o Egito, Suméria, China, Astecas, Romanos europeus etc., até os dias de hoje. Todo nosso conhecimento histórico corresponderia à urgência de uma hora e meia. Quase todo o dia, 22 horas e meia, seriam ainda apenas uma parte da pré-história (apenas o finzinho do Paleolítico e do Pleistoceno!). Pensamos saber tanto sobre nossa história, ainda que com tamanhas incertezas e questões. Pensamos saber tanto sobre essa hora e meia porque se nos afigura mais nítida, e porque nos contentamos em remeter o que está na bruma do dia todo que não vivemos a uma ideia de primitivo, de tosco.
Mais, a chamada sociedade industrial e urbana, que observamos nos últimos dois séculos, não chegaria a excitados e excitantes 2 minutos. Ou seja, em 2 minutos (ou muito menos do que 2 minutos, pois poderíamos, ainda segundo a ciência, recuar a existência do ser humano a bem mais do que 100.000 anos), criamos meios de destruição, de assassínio em massa, de desigualdade, mas também de conhecimento da natureza, de cura, de locomoção e comunicação, sem qualquer paralelo com todos os nossos antepassados, ainda que tenham se esforçado muito em nos anteceder nessas notáveis evoluções das técnicas e conquistas da natureza.
Fala-se muito em uma destruição ou alteração substancial do bioma no neolítico (CROSBY, 19834; DEAN, 19965), mas nesses últimos 3 minutos fomos capazes de comprometer substancialmente o bioma do planeta como um todo, ou seja, nossa condição de vida, a natureza, cujos códigos agora começamos a devassar e a alterar, sem entender bem no que mexemos.
Nada indica que estejamos vivendo em um dia (na verdade, minutos ou segundos) mais luminoso do que nossos antepassados distantes, e que o domínio técnico e da natureza representem, de fato, um progresso. Nem que o acúmulo cognitivo atual seja efetivamente uma melhor compreensão do mundo. Ainda que possamos nos beneficiar dos avanços técnicos, certamente suportam também uma incômoda condição de barbárie, violência e injustiça, que em nada fica a dever nisso ao passado que olhamos como distante. Aprimoramos tanto os direitos quanto os meios de destruição, e mantemos a desigualdade, o desprezo moral e violento de uns pelos outros, a arrogância da ambição e a vaidade do poder comprometendo as condições de vida da quase totalidade dos humanos.
2. representação e verdade
Não poderíamos começar este estudo sobre a natureza, o mundo e o tempo a que se refere “A Natureza eo Tempo (o Mundo)”, sem nos localizarmos na atual cosmogonia em que, como sociedade, pensamos existir. A representação de mundo que socialmente engendramos e partilhamos, que nos é afirmada como verdade, merece ser discutida no que é, no que a mobiliza e em quais conhecimentos mobiliza: que visões de mundo são assim mediadas, e a que direcionam? Essas explicações modernas (contemporâneas) são uma construção de e do mundo e uma visão da natureza e do tempo. Sem dúvida, uma sedutora e importante investigação científica, além de uma evidente e persistente necessidade em situarmo-nos além de nós mesmos.
Ainda assim, escapa também com certa facilidade a compreensão de que a visão científica é também uma explicação. O que significa afirmar que vai além do fato científico e constrói uma versão do mundo, e toda visão de mundo abriga e escolhe entre valores em conflito. Mais, a narrativa científica das origens é um esforço de fundação da própria natureza e autoridade da ciência na interpretação e definição contemporânea do mundo, antes demarcado pela fé ou, mais propriamente ainda que pela fé, pela religião.
A explicação científica não deixa de ser uma fundação (invenção) do mundo. Trata-se do estabelecimento de um mundo coerente com os pressupostos da modernidade, e da ciência. Ou seja, um mundo à imagem da sociedade laica que surge a partir dos séculos XVIII e XIX. Sem ir muito longe, são valores típicos da modernidade e da economia burguesa a noção de desenvolvimento, de ruptura com o passado, e de oportunidade e competição, interdependência sistêmica. O processo de um acúmulo de conhecimentos e capacidades técnicas e conceituais em sua investigação (construção) está no cerne da razão de ser da ciência, tanto quanto seu apego às evidências dos fenômenos como base da verdade, que torna-se assim também cumulativa em sua constituição.
A construção de narrativas científicas remetem o entendimento das origens às bases de um mundo que deve ser visto pelas evidências materiais, e por sistemas de organização, que são muito próprios da ciência. E da economia burguesa. Sua difusão desde a escola torna para nós natural algo que é construção, cultura e ideologia, e não apenas ciência. Subsidiariamente, insere-se em um contexto de construção de um mundo laico, desautorizando possibilidades que conflitem com suas formas de produção, organização e redação.
3. natureza, mundo, tempo…
O debate permanece aberto. A mim não interessa tanto o acerto ou não das ideias em conflito, mas que visão de mundo procuram estabelecer. Talvez jamais venhamos a conhecer cabalmente os mistérios de nossa origem e natureza, embora sejamos, obviamente, como se vê, capazes de perscrutá-la.
De modo que olhar para as origens, mais do que desvendar efetivamente uma verdade oculta, é revelar como nos concebemos no mundo. Todos os recuos no tempo citados neste ensaio e outros deste sítio, mais do que elucidar a questão, colocam em questão o que somos, como nos vemos e nos posicionamos na natureza, no cosmos e no mundo, no tempo e além dele.
O próprio título desta seção, “A Aurora na Neblina”, de certo modo poderia corroborar equivocadamente a noção de uma origem que progride, porque a ideia de aurora sugere a muitos um gradual preâmbulo do dia. Metáfora, e como toda metáfora, sua validade é dada em seu contexto e intencionalidade. Aqui não se trata disso, é outra a metáfora, apenas se vê de forma poética uma origem que se perde em uma bruma de mistérios: aurora e neblina. Ainda que possa ser a maior parte do dia, como vimos. E que resuma no desconhecido a maior duração, senão sua quase totalidade, do tempo humano.
Aliás, devemos notar que as construções tradicionais são também fortemente poéticas e não descrição de fenômenos. Essa longa aurora, para a ciência, que não se pretende poética, funda-se ainda no entendimento de que a complexidade organizativa é atingida com as sociedades urbanizadas, das quais nos sentimos herdeiros.
Também, por essa razão, afigura-se sedutor para mim, mais do que saber se tal ou qual datação está correta, entender as representações de mundo e a que direcionam as narrativas. Pois, mais do que verdade, trata-se de narrativas, de intencionalidades. Não me cabe resolver essas questões dos indícios do que aconteceu, e deixo claro que sou muito grato aos que se dedicam a isso. Meu exercício intelectual é discernir, e colocar em indagação, o campo significativo e existencial em que nos movemos e suas implicações, trabalho já árduo o suficiente.
Que não fiquem dúvidas, a pesquisa é sobre o mundo (o que inclui o tempo e a natureza, e no tempo e na natureza é incluso) como representação, em que se agarram e a que apontam as diversas representações em sua constituição dinâmica, que perspectivas abrem, e quais fecham, que implicações constroem.
Sim, eu sei, um campo que permanecerá aberto. Mas não deveria permanecer assim, mesmo com as posições que vamos assumindo e as certezas que nos movem? Ou, qual de nós, teria o direito – humano – de subjugar o outro? Qual de nós é testemunha dessas origens, que relate o sentido final do bisão na caverna? Mas não é isso o que temos feito tão bem, desde essa aurora imersa em uma densa neblina, até hoje?


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NOTAS
1 Versão inicial 10/02/2016 a 06/03/2016. Atualização: 07/03/2017. Revisão radical em 16/06/2017, podendo ser considerado um novo texto. O texto original gerou este e mais dois artigos.
2 JANSON, H. W. História da Arte. [1986] Trad. J. A. Ferreira de Almeida e maria Manuela Rocheta Santos, colab Jacinta maria Matos. 5a. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 27.
3 MUNFORD, Lewis. A cidade na história. Suas origens, transformações e perspectivas. [1961] Trad. Neil R. da Silva. 2a ed. São Paulo: Martins Fontes, 1982, pg. 14.
4 CROSBY, Alfred W. Imperialismo ecológico. A expansão biológica da Europa: 900-1900. São Paulo, Companhia das Letras, 1993.
5 DEAN, Warren. A ferro e fogo : a história e a devastação da mata atlântica brasileira. Tradução Cid Knipel Moreira. São Paulo: Companhia das Letras, 1996
como citar:
SANDEVILLE JR., Euler. “O bisão na caverna (artefatos e artifícios)“. Ensino e Pesquisa, A Natureza e o Tempo (o Mundo), on line, São Paulo, 2017.
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