A paisagem natural tropical e sua apropriação para o turismo

A PAISAGEM NATURAL TROPICAL E SUA APROPRIAÇÃO PARA O TURISMO
Euler Sandeville Jr.
Pubicado em 2002 (cf. referência no final da página)

 

RESUMO
O capítulo A paisagem natural tropical e sua apropriação para o turismo contribui para elucidar significados da ‘natureza tropical enquanto elaboração da cultura, em uma perspectiva histórica. Discute mudanças de pensamento e comportamento frente à natureza na passagem do século, alertando para aspectos ideológicos das atuais formas de sua apropriação simbólica, sobretudo enquanto componente do produto turístico. A mercantilização da paisagem e de imagens da natureza subjuga seu caráter anárquico e selvagem, padronizando e institucionalizando sua vivência e comportamentos perante ela. O capítulo foi escrito com base em minha Tese de Doutoramento “As Sombras da Floresta. Vegetação, Paisagem e Cultura no Brasil” (SANDEVILLE JR. 1999)

 

O ano de 1492, com a rendição de Granada, simbolizou o fim do domínio mouro na Europa. Nesse mesmo ano partiu a expedição de Cristóvão Colombo para as Índias, após mais de dez anos de tentativas e descréditos. Esses dois marcos da expansão colonial europeia foram acompanhados por um crescente intercâmbio comercial, movimentos migratórios, tráfico de pessoas, produtos e plantas tendo como fundo a revolução figurativa do Renascimento e depois do Barroco. Estava em curso uma transformação radical no conhecimento ocidental sobre o mundo, se é permitida essa generalização. Em pouco tempo a experiência, marcada por esse deslocamento geográfico, desbancou as teorias nebulosas que se imaginavam para o mundo e as discussões se seriam ou não habitadas suas regiões mais quentes, povoadas na fantasia de muitos escritores desde a Antiguidade com criaturas exóticas. Encontramos desde há muito tempo as terras tropicais envoltas em ideias e suposições que rompem o cotidiano e a ordem conhecida da natureza.

Inúmeras expedições seguiram-se à de Colombo – “herói” que morreu desacreditado e esquecido enquanto as terras que trouxe à luz, crendo ser o oriente, recebiam o nome do navegador Américo Vespúcio. Derramamento de sangue e redenção mesclaram-se de modo assombroso na conquista. A coroa espanhola subjugou violenta e rapidamente os Impérios dos Maias, Astecas e Incas, também a seu tempo conquistadores. Destruiu culturas que em alguns pontos pareceriam hoje mais avançadas que aquela de seus conquistadores europeus, e excitam a imaginação de cientistas e viajantes com suas monumentais ruínas e construções imponentes na paisagem.

Mais ao sul, os portugueses, que haviam investido em uma outra rota para as Índias, encontraram o caminho para a costa do novo continente, representado então como uma ilha, estabelecendo contatos, alianças e guerras com grupos fragmentados das tribos tupi e guarani, logo também disputadas por franceses, ingleses, holandeses. Esta mudança na ordem de todas as coisas, que já estava em curso, mas é ampliada por esses acontecimentos, pode bem ser sintetizada pela afirmação de que o gênero humano via o mundo abrir-se para si, com as grandes descobertas dos anos precedentes, feita por Luis Vives em 1531. Doravante, terras tropicais – Índias, Américas, Áfricas -, exerceriam forte apelo e influência no imaginário e no reenquadramento do conhecimento do mundo pelos colonizadores europeus.

As impressões suscitadas nos três primeiros séculos de conquista do Novo Mundo foram contraditórias. Oscilaram entre as imagens do paraíso terreal (HOLANDA, 1969; BELLUZZO, 1995), às representações do inferno (BELLUZZO, 1995), vagando entre motivações pragmáticas como a dos exploradores portugueses, até o esforço de encontrar uma explicação lógica e racional, científica e filosófica (derivando entre o preconceito e a exaltação), para o grau de diferença das paisagens europeias e americanas (GERBI, 1996).

Os relatos dos primeiros viajantes europeus às novas terras estão eivados de uma visão fantástica. Não existiu para eles uma necessária concordância entre o objeto e o narrado. De fato, estavam maravilhados por uma natureza prodigiosa e por esperanças de riquezas igualmente prodigiosas. Este acabou sendo um moto do processo inicial da conquista do novo mundo, embora o desgaste dos aventureiros na América contribuísse, até o final do século XVI, para algum desgaste dessa imagem referente ao paraíso. A base da visão do remoto como um lugar de maravilhas e prodígios está em uma experiência que se situa fora do familiar, anárquica, estimulada por fantasias que decorrem do desconhecimento e da projeção de antigas lendas, incertezas, mitologias sobre uma realidade que ainda não podia ser catalogada ou descrita dada sua alteridade, marcada por deslocamentos geográficos de antigos mitos, que muito lentamente cedem lugar a uma objetivação do conhecimento sobre essa realidade, como demonstram a persistência do Eldorado ou o próprio nome da região amazônica.

Devemos notar que, ao lado das visões do paraíso, coexistiram, se é que não foram de fato dominantes, apreciações pouco enaltecedoras (depreciações) da natureza nos trópicos. Os desapontamentos de não encontrar de pronto as montanhas e cidades de ouro imaginadas, a existência de canibais, o calor e as doenças tropicais mostraram desde logo que essa natureza abundante teria de ser conquistada, subjugada, transformada pelo trabalho em função dos interesses de outros lugares, da metrópole. A natureza deixa de ser dadivosa para o conquistador que daqui leva seus produtos (índios, árvores, aves etc.) e estabelece a necessidade de uma luta do colono com a terra.

Estas visões negativas, de certo modo, inauguraram também uma série de juízos de valor sobre a nossa identidade, no que se refere à tropicalidade (no que se inclui o calor e a preguiça decorrente, o valor da mata oposto ao da civilização etc.) e aos problemas sociais (sobretudo a herança da escravidão, a pobreza e os incômodos da miscigenação para as elites), como notaríamos em modernos como Paulo Prado, criando a ideia de um heroísmo pelo avesso, como se poderia dizer do Macunaíma de Mário de Andrade. O que revela uma outra face da identificação nacional com a tropicalidade abundante e fertilíssima: um estigma de inferioridade do qual não nos livramos, opondo natureza e civilização, para a qual passamos forçados de modo tão atormentado até hoje.

É corriqueiro e óbvio afirmar que a identificação da nação com a natureza começa do nome que nos define como tal (ibirapitanga, que significa árvore vermelha, com a qual os tupis tingiam suas fibras de algodão, ou, segundo os portugueses, pau-brasil). Se pudermos manter tal afirmação, na verdade ela tem uma significação mais complexa. Já é lugar comum mencionar que um dos primeiros atos dos portugueses aqui chegando foi derrubar uma árvore, confeccionando com ela uma cruz rústica. Atitude movida com certeza por considerações práticas para dar corpo a uma dimensão simbólica, que prevalece nos conflitos da cultura nacional até um erudito como Lúcio Costa, explicando seu plano para Brasília, afirmar que a concepção da cidade compara-se a um “gesto primário de quem assinala um lugar” demarcando dois eixos cruzando-se em ângulo reto (a geometria), que corresponderia, segundo ele, ao sinal da cruz.

Atribuir nome é estabelecer uma relação de identificação (não apenas posse ou conhecimento, como se diz frequentemente). As implicações do nome são claras aos contemporâneos. Ao nome oficial de terra de Vera Cruz atribuído por Cabral, substitui informalmente desde 1503 a designação de Brasil, dando lugar a objeções significativas e admoestações dos sacerdotes católicos para que se retomasse o nome original sob pena de, no juízo, a cruz de Cristo os acusar de mais devotos do pau-brasil que dela. Daí, sobre a questão, enfatizar uma estudiosa do assunto, Laura de Mello e Souza, que o Brasil guarda no próprio nome inscritas tais tensões associando-se a insubordinação do mundo natural caótico e contraditório ao demônio. Infernos à parte, demônios nem tanto, a tensão se revela entre os paus da mata e aqueles do trabalho; já são outra coisa, natureza transformada para a civilização.

Esses olhares europeus para a natureza tropical em busca de parâmetros relacionais, catalogação e sistematização do conhecimento, exploração de riquezas, geraram conceitos sobre uma possível “condição tropical”, que persistem. Adjetivações como pródiga, atraente, exuberante, gigantesca, primitiva, nova, dadivosa, assustadora, fecunda, revelam uma oposição entre natureza e civilização, ou necessidade civilizatória e o apelo sensorial e simbólico, quase um retorno às origens. Conceitos que foram assimilados como elementos de identidade ou identificação, produzindo inúmeras investigações e justificações desde os românticos do século 19, sob inspiração da apreciação estrangeira, e na busca ideológica de raízes da identidade nacional na realidade tropical e colonial, como apontado por Dante Moreira Leite em “O Caráter Nacional Brasileiro” e por Octávio de Souza em “Fantasia de Brasil” (SANDEVILLE JR, 1999). Brasil é o nome de referência de um país de fantástica e complexa diversidade de paisagens e ecossistemas, caminhos da história e dos povos, das etnias, de diferenças regionais e profundas desigualdades sociais, evocação de paixões, de antropofagia, de imitação. Tropicalidade, sensualidade, história, primitivismo, malandragem, mesclam-se no imaginário oficial e culto sobre o país.

Esse apelo da natureza tropical não deve nos confundir, entretanto. O remoto maravilhoso desde logo se mescla com os sonhos de colonização e conquista a nível mundial e, embora apoiado na imagem de uma natureza prodigiosa e exuberante, refere-se às possibilidades mercantis dessa conquista. A natureza é, de fato, um pano de fundo na construção da imagem do Novo Mundo, uma fonte de produtos naturais e de força de trabalho escrava. Embora a descoberta do Brasil comece enquadrada pela impressão causada por sua natureza, especialmente por sua vegetação e pelos nativos (que são vistos por europeus advindos como primitivos ou degenerados e como parte da natureza), a motivação do colonizador em suas aventuras exploratórias mares afora foi, sobretudo, econômica.

Suas características são bem conhecidas. A construção da paisagem brasileira no período colonial se deu através da apropriação predatória dos recursos naturais, totalmente referenciada a Portugal e praticamente restrita ao litoral. A faixa da colonização correspondeu basicamente ao domínio da “mata atlântica”, que cobria cerca de 12% do território nacional (1.085.544 km2 dos 8.514.000 Km2), tornando-se o ecossistema brasileiro mais destruído. A extração intensa do pau de tintura denominado brasil levou-o quase à extinção, afetando no primeiro século cerca de 6 mil quilômetros quadrados da Mata Atlântica. Preocupado com o comprometimento da essência, em 1605 Portugal decretou que a penalidade para a exportação ilegal seria a morte.

A agricultura extensiva e itinerante devorou onde possível a mata costeira, destruindo e queimando a selva, substituindo-a por monoculturas exóticas como a cana-de-açúcar, a qual pode ter acarretado a devastação de 2.200 km2 da floresta e manguezais. Esta era a única atividade econômica lucrativa além da extração do pau-brasil que vinculava a Mata Atlântica à Europa nos séculos iniciais, crescendo sua produção lentamente (em 1600 atingia 10.000 toneladas, em 1700 atingia 19000 toneladas, conforme estimativas feitas por Warren Dean, 1996). As entradas foram expedições cheias de violência e assassinatos, a partir de Porto Seguro, Espírito Santo e principalmente de São Paulo para apresamento dos indígenas e procura das pedras e metais preciosos que as lendas diziam haver no interior do continente (cuja descoberta veio a causar interferências em 4.000 km2 da Mata Atlântica, com a destruição de 20% na faixa aurífera – aproximadamente 450 km por 45 km de largura – entre Diamantina e Lavras, ainda conforme estimativas de Warren Dean, 1996).

O país, considerado mega diverso, talvez abrigue em seu território cerca de 15 a 20% das espécies vivas do planeta. Condição que pode ser explicada por suas dimensões continentais, atravessando inúmeros ecossistemas e reorganizando-os no processo de ocupação territorial. Com a consciência da crise ambiental as atenções internacionais cobram posicionamento do país em prol da conservação dos recursos naturais. Vinte anos após a conferência emblemática em Estocolmo (1972), foi realizada a conferência internacional no Rio de Janeiro (Eco 92), em meio ao cenário tropical e favelas da “cidade maravilhosa”. Segundo a UNESCO, em 1992 apenas 2,4% do território brasileiro estava protegido por Unidades de Conservação em contraste com a média sul-americana de 5,7%.

Apesar de dispositivos protegendo recursos naturais (madeira e água) desde o período colonial e imperial, é a partir das Constituições de 1934 e 1937 e com os Códigos de Caça e Pesca, das Minas, das Águas e o Florestal, todos de 1934, que essa proteção começou a ser mais efetiva. Inspirado no movimento norte-americano do século XIX, a partir do Estado Novo são criados os primeiros parques nacionais, sendo o primeiro o de Itatiaia (embora as discussões remontem ao século passado). A convivência difícil e contraditória com a natureza no processo de construção da nação brasileira, é oficializada em sua dimensão subjetiva como um patrimônio estético e cultural do país. A partir dos anos 1930, a natureza no Brasil é entendida nestas duas dimensões (riqueza e cultura), que passam a cooperar doravante para os interessados no gerenciamento de seus recursos e significados.

Deve-se considerar que esses avanços conceituais e jurídicos tinham apoio em uma importante produção científica e em inúmeras expedições pelo território nacional de botânicos, geógrafos, artistas, intelectuais, dando continuidade no século XX às investigações que marcaram o século XIX. Esses viajantes modernos do século XX, ao contrário daqueles do século XIX, ainda são pouco explorados pelos trabalhos acadêmicos. Eram em grande parte estrangeiros ou descendentes de estrangeiros, ainda formados no exterior ou na prática do ofício. A introdução institucional da geografia no Brasil se deu com o concurso de estrangeiros durante o Estado Novo, com Deffontaines, Monbeing, Weibel; da botânica na década de 1940 com a contribuição de Rawitscher, e ainda na década de 1930 tivemos a contribuição de Lévi-Strauss, entre outros humanistas. Inúmeras expedições estrangeiras foram organizadas para inventariar os recursos do território nacional, como a realizada pelo ex-presidente norte-americano, Theodore Roosevelt, em companhia do Coronel Rondon, da qual resultou um relato publicado em 1914 com o título “Trough the Brasilian Wilderness“. Especial importância deve ser creditada a Frederico Hoehne por inúmeras excursões das quais participou ou que organizou a partir de 1908, quando saiu com a Comissão Rondon e depois com seus colaboradores, responsáveis pela implantação do Jardim Botânico de São Paulo entre 1928 e 1938.

A preocupação com a conservação dos lugares da natureza não veio à toa. Estimativas em 1988 indicavam que restassem da Mata Atlântica apenas 8,81% do domínio original (9.5641 km2). Esses remanescentes foram declarados pela UNESCO Patrimônio da Humanidade. As principais formações abrangidas são a floresta ombrófila densa, a floresta ombrófila mista, a floresta estacional, manguezais e formações de restinga, apresentando elevada percentagem de endemismo: 50% de suas espécies arbóreas, 70% de suas bromélias e orquídeas e 39% de seus mamíferos. Das 202 espécies de animais ameaçadas de extinção no território brasileiro, 171 vivem nos remanescentes da mata atlântica. A maior extensão remanescente da mata atlântica está no Estado de São Paulo, onde restam apenas 7% (1.731.472 ha) dos 20.450.000 ha originais desta formação (que correspondia a 81,8% do território do Estado), mas em geral na encosta atlântica, de altas declividades e difícil acesso, mesmo assim bastante alterada sobretudo nas proximidades das regiões metropolitanas de São Paulo e Santos. Destaque-se que a região é o maior polo de concentração populacional e da riqueza da América latina. Entre 1900 e 1950, a população do sudeste cresceu de 7.000.000 de habitantes para 22.000.000 (DEAN 1996:254), tornando-se a região atravessada por 21.500 km de ferrovias e 166.000 km de estradas. Entre 1950 e 1990, a população do Município de São Paulo aumentou de 2.198.096 para 11.380.300 habitantes, ou seja, a população do Município de São Paulo em 1990 equivalia a quase metade da população registrada por Dean para toda a região sudeste em 1950 (22.000.000 de habitantes). Nesse período a população da Grande São Paulo aumentou de 2.662.786 para 17.448.600 habitantes (indicando uma considerável concentração da população da Região Metropolitana no Município de São Paulo).

Foi sobretudo entre 1920 e 1934 que as florestas do Estado de São Paulo foram abatidas, da região das Cuestas até o Rio Paraná (“frente pioneira” para o oeste). Pelo censo agrícola do Estado de São Paulo de 1905, 34% da área levantada era coberta por floresta primária. Já o de 1950 registrou 15% da área levantada, não distinguindo, entretanto, entre floresta primária e secundária. Ainda que possamos considerar que a grande devastação das florestas no Estado de São Paulo ocorreu até a metade do século, seguindo-se depois uma destruição dos detalhes, as políticas públicas foram extremamente agressivas com os ecossistemas e consolidaram o distanciamento das populações nos centros urbanos das áreas naturais remanescentes. A atenção, como se sabe, foi com o desenvolvimento econômico, que se tornou o lema da política brasileira durante os anos 50. A região sudeste, em decorrência dos desenvolvimentos ocorridos no período tratado, passou a concentrar o principal vetor desse desenvolvimento industrial, no triângulo São Paulo, Belo Horizonte, Rio de Janeiro (embora se registre uma queda nos índices econômicos relativos ao Estado de São Paulo a partir de 1970). Tal concentração de recursos financeiros, institucionais e infraestruturais, nesse trecho do território nacional se fez acompanhar de novos e gravíssimos problemas, como foi o caso da constituição do polo industrial de Cubatão.

Atualmente, o tema da conservação da natureza mostra um deslocamento dos conceitos preservacionistas que estiveram na origem dos parques norte-americanos, como Yellowstone (1872) e Yosemite (1890), e que desencadearam uma série de outros em vários países (Canadá, 1885; N. Zelândia, 1894; África do Sul e Austrália, 1898; México, 1894; Chile, 1926; e finalmente Brasil em 1937). O fundamento estético é minimizado e passa a argumentar-se a partir do conceito de ecossistema e biodiversidade (por biodiversidade entende-se a variabilidade genética, a totalidade de espécies, sua distribuição e estrutura ecológica, e não apenas a diversidade de espécies), propondo estratégias para o desenvolvimento sustentado e a valorização das comunidades. Nas décadas de 1970 e 1980 foram criadas, em todo o mundo, 2.098 unidades federais de conservação, com mais de 3.100.000 km2, o que, somado às 1.500 unidades (3.000.000 Km2) criadas desde o início do século, perfazem 5% da superfície terrestre. No Brasil, em 1990, havia quinze tipos de unidades de conservação, com 429 áreas públicas perfazendo 48.720.109 ha, dos quais 40.000.000 ha na Amazônia. Embora 80% das unidades se localizassem na Região Sudeste, perfaziam uma área de apenas 8%.

Áreas protegidas criadas por década no Brasil e no mundo. Em SANDEVILLE JR., Euler. As sombras da floresta. Vegetação, paisagem e cultura no Brasil. Orientação Miranda Martinelli Magnoli São Paulo, Tese de Doutoramento, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, 1999. Fonte: DIEGUES, Antônio Carlos Sant’Ana. O mito moderno da natureza intocada. São Paulo, NUPAUB-USP, 1994:14.

Acresce que a criação dessas unidades, muitas vezes parcialmente implantadas, não enfrenta problemas sociais de base nas regiões em que são criadas, não tem sua estrutura fundiária devidamente regularizada e muitas vezes a destruição em áreas públicas é ainda maior que em áreas particulares por motivos sociais e políticos como no Pontal do Paranapanema, ou por motivos de investimento tecnológico em infraestrutura como Sete Quedas, Paraná. Em parte os problemas devem ser entendidos em um contexto de crise do Estado, no âmbito da qual as políticas com meio ambiente, que são recentes, ganharam destaque, porém a organização efetiva desse setor ocorre lentamente, devido à pouca ênfase que se se atribui no país às políticas de caráter social (no que se incluem aqui as culturais e com a organização do ambiente).

Nos últimos trinta anos, após a Conferência de Estocolmo em 1972, foi publicada uma série de importantes documentos internacionais, entre eles, Estratégia Mundial para a Conservação (UICN, 1980); Nosso Futuro Comum (ONU, 1986); e Conservação e Desenvolvimento: Pondo em Prática a Estratégia Mundial para Conservação (UICN) e mais recentemente a Agenda 21. Passam a servir de referência para as ações dos diversos países. Por esses documentos pode-se identificar tendências atuais no discurso oficial ou não governamental aceito sobre o tema. Entre essas características, a mais marcante é a criação e a defesa de uma “nova ética”, que considere a “capacidade de suporte” dos ecossistemas, um compromisso com as gerações futuras, a participação a nível local e a decisão de conteúdos gerais em uma nova organização supranacional. Essa nova ética, de respeito à natureza e à diversidade cultural, “politicamente correta”, é institucionalizada a partir de organismos internacionais.

Um desses documentos é Caring for the Earth. A Strategy for Sustainable Living publicado em 1991 pela UICN (União Internacional para a Conservação da Natureza ), PNUMA (Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente ), WWF (Fundo Mundial para a Natureza ), e traduzido com o nome “Cuidando do Planeta Terra. Uma Estratégia para o Futuro da Vida” (GOVERNO DE SÃO PAULO, 1992). Propõe princípios para uma vida sustentável e 131 ações para sua implementação, em várias áreas: energia, negócios, indústria e comércio, assentamentos humanos, áreas agrícolas e pastagem, áreas florestais, água doce, oceanos e áreas costeiras. Especificamente com relação às áreas florestais o documento denuncia que cerca de 2% das florestas e matas tropicais (que constituem 42% das áreas florestais do planeta) são desmatadas anualmente (180.000 Km2), apontando, com toda razão, o distanciamento das políticas fundiárias para as áreas agrícolas, daquelas de conservação ambiental.

O documento reconhece desigualdades políticas e econômicas graves entre as nações e no consumo energético. Aponta que os 42 países com nível alto e médio para alto de consumo de energia per capita contêm um quarto da população do mundo, e respondem por quatro quintos do uso total de energia comercial, consumindo em média 18 vezes mais energia comercial que o habitante de um país de baixo consumo e causa muito mais poluição. Os 128 países com consumo de energia per capita de níveis baixo a médio para baixo contêm três quartos da população mundial mas respondem por apenas um quinto do consumo de energia comercial (GOVERNO DE SÃO PAULO, 1992:8). Informa que a dívida acumulada do Terceiro Mundo atingia mais de um trilhão de dólares e o pagamento de juros 60 bilhões de dólares ao ano, com transferência de capital dos países de menor para os de maior renda (Governo de São Paulo, 1992:83).

Sua pedra de toque é uma afirmação clara e universalmente aceita dos princípios de conduta humana, dentro do mundo da natureza” (GOVERNO DE SÃO PAULO, 1992:5) e “uma nova organização mundial para inspecionar a aplicação da nova ética mundial e chamar a atenção da opinião pública para as violações maiores contra ela cometidas (GOVERNO DE SÃO PAULO, 1992:5). Seu caráter messiânico e universalista é claro, e deixa a descoberto suas rais motivações em vincular as questões ambientais a processos produtivos e a organizações internacionais, de onde lhe advém algumas contradições importantes. Pretende constituir-se em um amplo movimento mental mudando atitudes atuais – trata-se, pensamos, de uma utopia no sentido que elas têm, inclusive de autoritário. Seu apelo é moral, mas funda-se em um conhecimento técnico que aponta para “conservar os sistemas de sustentação da vida” (processos ecológicos, conservar a biodiversidade, assegurar o uso sustentável dos recursos renováveis). Ainda assim, seu grande apelo é para os povos se irmanarem a partir de um objetivo comum, construindo uma humanidade única, para uma nova “pangea” (SANDEVILLE JR., 2001), baseada no reexame de valores e mudanças de comportamentos, valorizando a criação de instâncias locais de implantação, discussão e monitoramento. Esse novo comportamento deveria então se rebater em novas estruturas institucionais e jurídicas abrangentes, na definição de políticas econômicas e emprego de tecnologia. A conclusão subjacente é lógica:

A sustentabilidade global vai depender de uma firme aliança entre todos os países. Porém, como os níveis de desenvolvimento do mundo são desiguais, os países de menor renda devem ser ajudados a se desenvolver de maneira sustentável e a proteger seu ambiente. Os recursos globais e comuns a todos, especialmente a atmosfera, os oceanos e ecossistemas coletivos, só podem ser controlados com base em propósitos e resoluções coletivas. (…) Nenhuma nação é autossuficiente (…) Uma aliança global exige que todas as nações aceitem suas responsabilidades e atuem na medida permitida por seus recursos. A aliança exigirá também instituições internacionais devidamente financiadas, tanto não governamentais quanto intergovernamentais. Constitui exigência maior o fortalecimento da legislação internacional” (GOVERNO DE SÃO PAULO, 1992:11).

A questão é claramente ideológica (“Constituir uma Aliança Global” é o título do capítulo nove do documento) e caminha na direção da mentalidade contemporânea que prevê um novo estado de coisas, como já apontamos. A tônica é pessimista, fundada em um neomalthusianismo, mas aponta para uma saída redentora. Temos que reconhecer, entretanto, que o documento é muito pouco prático, muito retórico, ideológico. A especificidade das questões não é vista em profundidade, quer temática, quer da estrutura de poder e de interesses geopolíticos internacionais e locais. Chama-nos atenção tamanho esforço em constituir e difundir uma nova ética fundada em uma aliança global. No entanto, este se tornou um discurso já estabelecido, gerando documentos de importância que começam a balizar ações em vários níveis, pela autoridade que passam a gozar frente às pressões e enormes carências existentes. Tal foi o caso, por exemplo, da Agenda 21, servindo de referência a inúmeros trabalhos, quer pela generalidade que possibilita por um lado, quer pela visão de conjunto de problemas que até agora têm sido enfrentados como se fossem divorciados, e não são.

A ideia de uma “nova sociedade”, em si, já diz muito. Emergindo de uma “velha”, a força da ideia de um “novo” tempo, nova ética, nova consciência ambiental, novo relacionamento entre os povos, etc., desvenda o caráter ideológico e o apelo simbólico que se pretende para o futuro próximo. Esse mundo novo global e incerto que descortinamos ligados à emergente cultura visual dos meios de comunicação, distingue-se enquanto mensagem e imagem, que facilmente caem em slogans. Assim, o espaço não é aquele da transição, da transparência, do cristal, da estrutura, da ordem lógica que norteou as utopias da modernidade, e sim o da ambiguidade, do desconcertante, do heterodoxo, do lúdico (irônico?), da colagem (Ready made, object trouvé, empréstimos, saques). A linguagem abandona a obediência estrita aos princípios da arte abstrata geométrica, incorporando por influência do pop elementos de origem dadaísta, surreal, tanto quanto do consumo, da publicidade, do marketing. A mensagem não é de progresso, de domínio técnico, mas de individualidade, perda de controle, impossibilidade de certezas absolutas senão no encontro (trouvé surrealista) do cotidiano estilizado.

É nesse “mundo novo” que milhares de cidadãos deslocam-se por ano entre as diversas regiões e países (em movimentos forçados, de negócios e de lazer, sendo a estes últimos a que me refiro aqui), cada vez com menores entraves burocráticos ao turismo. Esta atividade é celebrada como a “empresa do século 21”. A questão do lazer adquiriu proporções fantásticas. O tempo livre deixou de ser “improdutivo”, à medida que todas as esferas da vida vão sendo subordinadas ao consumo. Os números referentes ao turismo são em geral impressionantes. Considerado no início da década de 70 um dos três maiores produtores de riqueza (US$100 bilhões, equivalendo então a 6% do PIB global, atrás apenas da indústria bélica e de petróleo), movimentou 430 milhões de pessoas e gerou 100 milhões de empregos (RODRIGUES 1999:17, 78). Segundo Donaire (in LAGE E MILONE 2000:81), a indústria mundial do turismo movimenta atualmente US$3,8 trilhões por ano, mais da metade do PIB dos 11 países europeus (PIB de 6,8 trilhões, 290 milhões de habitantes) que estão adotando a partir de 1999 a moeda europeia unificada. Em alguns casos o desenvolvimento é surpreendente, como por exemplo Cancun, centro turístico que surgiu em torno a um duplo apelo: um passado fascinante com os testemunhos cheios de mistérios do Império Maia (as ruínas de Tulum e Chichen-Itzá) e a natureza paradisíaca do mar do Caribe. A esses elementos foi sobreposto um sistema de consumo elaborado e eficiente, que captava no início dos anos 1990 cerca de 70% do volume de capitais gerados pelo turismo no México.

Os hotéis foram projetados de modo a fixar os hóspedes em suas dependências como ilhas de fantasia e lazer, em cujos programas o turista encontra satisfação “da sedução hedonista do prazer do consumo fácil, protegido e serviçal” (RIBEIRO E BARROS 1997:31, ênfase minha). Segundo o autor citado, o local em 1970 era uma vila isolada com 426 moradores, passando em 1990 a ser um setor hoteleiro com 40 hotéis (16.805 unidades habitacionais) e uma cidade de serviços, Cancun, com 300.000 habitantes. Memória (ruínas) e paraíso natural (selvas e corais) somam-se como cenário exterior a um mundo de consumo e estímulo permanente, ocultando a dramaticidade dos conflitos históricos da conquista e da situação social atual, tanto dos descendentes indígenas quanto da pobreza das regiões ao redor.

Também no Brasil os investimentos crescem. A rede Accor, por exemplo, planejou criar em 5 anos 80 novos hotéis, um investimento de US$600 milhões, gerando 5.000 empregos diretos, e a rede Choice planejou 79 novos hotéis no Mercosul. Entretanto, a atividade turística no Brasil não exerce toda a atratividade que se atribui: em 1994 o turismo no Brasil movimentou direta ou indiretamente cerca de US$45 bilhões (possibilitando uma arrecadação tributária de cerca de US$8 bilhões), empregando 6 milhões de trabalhadores com um movimento salarial de US$ 16 bilhões. Entretanto, o país, considerado o maior potencial turístico do continente, ainda recebe menos turistas que o Uruguai e a participação brasileira no mercado mundial foi de apenas 0,3% do total de viagens internacionais em 1993(Correa, in LAGE E MILONE 2000:98).

Especificamente com relação ao segmento do “ecoturismo” registrou-se em 1988 entre 157 e 236 milhões de ecoturistas no mundo, sugerindo um valor entre US$93 bilhões e US$233 bilhões (Irwing 2000:23). Em 1989 as atividades de recreação e lazer nos parques nacionais norte-americanos geraram retorno superior a US$400 milhões, tendo atraído em 1991 260 milhões de turistas, gerando nesse ano US$3 bilhões. No Brasil, Donaire (in LAGE E MILONE 2000:81), menciona ter sido investido cerca de US$20 milhões em 19 Parques Nacionais para melhorias de infraestrutura para visitação. Mais de meio milhão de pessoas no Brasil praticariam o ecoturismo, gerando 30.000 empregos através de no mínimo 5.000 empresas.

Se os números são promissores, algumas questões permanecem subjacentes. Números à parte, mesmo impressionantes, em que consiste esse potencial tão decantado? Qual o poder de atração que representam polos como Natal, Bonito, Fernando de Noronha, Pantanal, Salvador, Manaus, Foz do Iguaçu, Chapada Diamantina, apenas para citar alguns, tão diversos entre si, desses lugares privilegiados de destino. Neles a paisagem tropical sempre comparece como um componente essencial, mesmo quando o aspecto humano seja determinante da experiência turística, lembrando René Dubos, para quem, a cada pessoa que sobe nos altos montes para descortinar panoramas naturais, cem outras se dirigem aos bares, onde os maiores espetáculos da natureza são os outros humanos.

Em que consiste esse desejo contemporâneo de retorno e proteção à natureza e aos saberes tradicionais, que se opõe, ao menos nominalmente, às posturas predatórias da sociedade altamente tecnológica, tecnocrática e globalizada? O que oferece o turismo nesse olhar para a natureza, tornando o deslocamento pela paisagem uma experiência de massa? Trata-se de um comportamento, um fato da cultura, onde se busca uma personalização crescente do consumo das imagens naturais. Entende-se que o perfil desse turista, segundo a Associação Brasileira de Ecoturismo, é em geral pessoas de várias faixas etárias “com espírito de aventuras, curiosas e que adoram sobretudo compartilhar experiências” viajando em grupos pequenos “e têm como característica o trabalho de equipe e o companheirismo”. Daí as definições de ecoturismo se multiplicam, basicamente em torno de uma ideia expressa na Política Nacional de Ecoturismo, postulando-se como atividade que colabora com a proteção de recursos naturais e culturais de uma região.

A ideia básica alegada e publicizada, portanto, é a de utilização sustentável de recursos naturais para atividades de lazer e conhecimento, deixando benefícios econômicos para a população local, a par do respeito e conservação de culturas tradicionais. Não que ocorra de fato, mas dadas as circunstâncias não se pode negar o interesse que essa modalidade de turismo representa em relação a outras modalidades que também adotam a natureza como um componente de apelo fundamental no produto turístico. Esbarra-se, entretanto, em dificuldades que vão do conhecimento científico insuficiente, a outras que são operacionais e de gestão, ou até simbólicas, na linha de entender a natureza como um santuário intocável, da qual os humanos predadores devem ser mantidos distantes, além daquelas inerentes à experiência com a paisagem e o outro ser tratada como produto (negócio). Estes conceitos procuram aderência aos elementos da cultura contemporânea que mencionamos anteriormente, ao tratar de documentos internacionais voltados para novas formas de gestão dos recursos naturais.

A crítica dessas novas ideologias e comportamentos é necessária, conquanto sejam uma tendência inevitável no momento, e em certos casos possam apresentar contribuições positivas. Trata-se de discutir essas práticas em seu processo de constituição. No limite, discute-se os modos como grupos de consumidores e empresas estão vendo e atribuindo valores ao ambiente atual, e o conceito de natureza subjacente ao “atual estado de espírito”. Há ainda que se questionar se os benefícios alardeados realmente estão ocorrendo:

a distribuição de benefícios gerados pela utilização da área natural ilustra o tipo de distorção que pode ocorrer em situações semelhantes, em demais países em desenvolvimento: 47% dos recursos obtidos com o ecoturismo foram dirigidos à principal companhia de turismo que opera na área, 44% para a rede de hotéis e, apenas 7% para guias, dos quais 20% para o chefe dos guias” (IRWING 2000:25, referindo-se a pesquisa realizada na Indonésia, mas que em seu entendimento pode ser extrapolada para outros casos).

Em outras situações pode estar ocorrendo a privatização ou “corporativização” do recurso. É o caso, em pequena escala ainda, de São Sebastião num dos trechos mais valorizados do litoral paulista, onde sob o pretexto de controle do acesso ao recurso e da valorização das “comunidades locais”, é coibido o acesso de ônibus de veraneio ao município. Subordina-se também o acesso aos recursos protegidos (embora não se note uma fiscalização efetiva no nível local) à supervisão do olhar de um guia local cadastrado para tal através de organizações próprias. Tais atitudes, ainda que tenham o caráter de controle que é necessário e representem avanço em relação a práticas anteriores, são questionáveis ao criar uma reserva de mercado vinculando o acesso à natureza tropical à sua institucionalização e profissionalização, pondo a descoberto a mediação comercial que se faz em torno da fruição da natureza, minimizando e instrumentalizando os alegados acesso a recursos para a população local.

Esse frenesi consumista da paisagem natural, e em específico da paisagem tropical, no que possa ou não ser classificado como “verdadeiro ecoturismo”, ou modalidades derivadas, ainda está muito próximo das impressões descritas com a veia modernista de Blaise Cendrars em sua visita ao Brasil: “É o paraíso terrestre!” exclamava margeando a costa brasileira, com os turistas enfileirados com expressões de admiração espontâneas, disparando suas Kodak, Leica, Rolleiflex com encantamento e exaltação diante da paisagem tropical (SANDEVILLE JR. 1999:254). Mas nunca antes o sentido de continuidade foi tão forte: pode-se atravessar lugares tão distantes e diversos, tornados tão próximos e homogêneos por todos os meios de circular imagens e pessoas. O deslocamento pode se dar com uma percepção reduzida do espaço entre as cidades, é possível transpor realidades sem as tocar. O percurso perde importância, interessam apenas os elos da cadeia, os destinos finais, isto é, os produtos. Quem vai a Fernando de Noronha, saindo de São Paulo, por exemplo, pode ter a experiência de acordar no arquipélago, a 300 Km do continente, após ter dormido em Natal sem ao menos ver a cidade (aeroporto-avião-aeroporto-ônibus-hotel-ônibus-aeroporto-avião-aeroporto).

Sua consciência desloca-se, no caso desse circuito, de uma das maiores concentrações populacionais do planeta, sem mediações, para a apreensão da imagem da ilha vista do alto e, logo depois, a bruma luminosa da manhã, o cheiro do ar, as paisagens nas quais mergulha inebriado por poucos dias, envolvendo-se em caminhadas e passeios em meio a turistas super estimulados na continuidade de seu estresse cotidiano, porém em um cenário paradisíaco e pleno de sensualidade. Apesar das diferenças, se mantém uma relação social típica dos centros urbanos, transposta para o cenário paradisíaco do isolamento insular do arquipélago. Ou seja, o distanciamento do seu cotidiano proporcionado por um imenso oceano se dá numa continuidade quase instantânea de consciência entre coisas tão diversas, entre belezas tão díspares!

Atingimos um portal que nos coloca também em uma continuidade milenar do que pensamos como civilização. Cada turista pode transformar-se em um pequeno saqueador das riquezas, tesouros, da alma de qualquer lugar, em qualquer tempo, e depois voltar ao seu cotidiano, tendo apenas atravessado o espaço, sem ter vivenciado sua estrutura cultural, paisagística, social tão diversificada, sem que se exija dele mudança de hábitos (rigorosamente, talvez seja essa sua experiência em sua cidade de origem). Colecionadores de paisagens, como souvenires cristalizados em fotografias a serem mostradas aos amigos e familiares no retorno dos lugares exóticos, distantes, ou excepcionais. Haveria que se reconhecer esse sentido quando nos tornamos cidadãos de uma Terra ao mesmo tempo global e fragmentada ao extremo.

Fantasia, sensualidade, liberdade, consumo estimulado em pacotes rápidos de cerca de uma semana nas muitas modalidades classificatórias do turismo que vão surgindo, tendem a gerar ou consolidar comportamentos estereotipados e superficiais. Trata-se de um consumo de imagens, quando não de clichês, onde o elemento caótico e selvático da natureza, ou de estranhamento de outras culturas, pode ser absorvido a partir da ordem de regras de bom comportamento “politicamente correto”. Indo além, em muitos desses casos, a fantasia, a sensualidade, a liberdade, podem ser vivenciadas a partir de uma ordem, de uma quebra controlada do cotidiano, de limites que têm a paisagem tropical (“paradisíaca”) como fundo, em contraste com a paisagem corriqueira e agressiva nos centros urbanos.

Um exemplo aparentemente menor pode ser muito elucidativo: o rio Tietê tem suas nascentes no extremo leste da região metropolitana de São Paulo, no município de Salesópolis. Mantém condições boas ou aceitáveis nos municípios de Mogi das Cruzes e Suzano, serpenteando pela paisagem parcialmente preservado, embora haja uma ocupação crescente de suas margens. A partir de Poá, com amplas áreas de extração de areia e depois em São Paulo, onde se encontra canalizado e confinado pelas avenidas marginais, torna-se um rio morto. As nascentes em Salesópolis, dada a importância inclusive histórica do rio, estão protegidas. Enquanto a cidade invade o rio nos dois municípios mencionados de Mogi e Suzano, emparedando-o cada vez mais a exemplo do que já ocorreu em São Paulo (apesar do resultado desastroso bem conhecido), e enquanto suas margens são consideradas insalubres e terrenos de baixo custo para urbanização, são realizadas excursões por escolas e por empresas de turismo ecológico às míticas nascentes. Enquanto grupos vão conhecer a nascente, assinalada e autorizada por placa comemorativa da Comissão Geográfica, e da qual o rio provavelmente pouco dependa depois das obras de engenharia para captação e represamento, o rio propriamente dito é evitado e negado na prática como elemento enriquecedor da paisagem urbana. Dirige-se em passeios (o excepcional, a quebra do cotidiano) a um filete emblemático de água e ignora-se o rio onde ele se mostra com todas as suas características (cotidiano), a cerca de apenas 1 km do centro urbano nesses dois municípios.

O controle da experiência do lazer, subordinado o “tempo livre” cada vez mais ao imperativo de uma ordem produtiva e consumista, tende a gerar comportamentos e percepções homogeneizados e simplificados diante dos fatos da natureza e da história. Tanto o forte apelo desses lugares quanto a sistematização do seu acesso não passa desapercebido aos empreendedores, que de um modo não teórico, entendem esses mecanismos e as oportunidades de investimento que trazem, mas, nessa prática, e ao forçar a institucionalização do setor (do que dependem verbas, incentivos e controles do governo), reforçam a “mercantilização da paisagem”. O lugar, para o turismo, torna-se um elo em uma cadeia ou rede global de consumo, contraditoriamente mais acessível e ao mesmo tempo dissociado do cotidiano da experiência ambiental. A paisagem tropical, em suas múltiplas acepções e arranjos culturais e naturais, torna-se uma experiência distanciada, eventual. A experiência da natureza acaba sendo uma experiência urbana em uma grande quantidade desses casos, subordinada a alguns princípios sistematizados de bom comportamento, “politicamente correto”. Pode-se estar no meio de uma floresta, do mesmo modo que em um bar, sem apreender efetivamente sua selvageria, sem se deixar impregnar por seus sons, cheiros e luzes altamente dinâmicos, e acabar por vivenciar o espaço como uma realidade virtual, como uma exaltação de emoções que se esvai rapidamente. Se é necessário promover mudanças de comportamento, mais afinadas com um direito coletivo, é necessário não perder de vista o caráter antropofágico e caótico da selva, para que, inversamente, não deixemos de compreender os mecanismos da sociedade que se está formando.

A natureza, símbolo de identidade tropical, entra no novo milênio com o duplo papel de riqueza, enquanto biodiversidade e enquanto cenário e objeto de consumo. Isso para não abordar a questão dos avanços tecnológicos recentes, sobretudo em bioengenharia, invadindo o âmago dessa esfera considerada até então inexpugnável ao artifício humano. Os avanços das últimas décadas, no que se inclui energia atômica, aviões supersônicos, computadores, internet, transplantes de órgãos, redefinição de fronteiras nacionais, engenharia genética, automação de tarefas e ambientes, televisão, viagens espaciais etc. etc., criaram modos de ver e vivenciar o mundo totalmente diversos das experiências das gerações que, por séculos, nos precederam. No entanto, apesar de já ser outra coisa, a natureza ainda é tratada em grande medida como um mito romântico sobrevivente. Não podemos deixar de mencionar a afirmação desconcertante de Lenoble (1990) em seu livro com o instigante título “História da Ideia de Natureza”, para quem sempre se observou a natureza (os papuas, os filósofos gregos, os cientistas iluministas ou contemporâneos, etc.), e mesmo que o local fosse o mesmo, a natureza não era a mesma. É necessário, enfim, reconhecer a natureza como um produto da cultura, bem como o conhecimento sobre ela, e a partir daí estabelecer sua discussão, pois a “ideia de natureza” irá mudar de maneira drástica, ao que tudo indica, na próxima década.

Devemos alertar que o conceito de natureza, a par do consumo de suas imagens a que nos referimos neste trabalho, está mudando imensamente. Doli, a ovelha que foi o primeiro mamífero clonado a partir das células de um animal adulto em 1997, é uma criatura do passado; há cerca de um ano nasceu o primeiro primata clonado e dia 11 de janeiro de 2001, foi anunciada a criação do primeiro primata transgênico, incorporando a proteína fosforescente da água viva: a notícia, veiculada pela Folha de São Paulo, comentava que o macaco “tem três meses e ainda não fica verde de fato”, acrescentando que os cientistas explicaram que a manifestação do transgene pode atrasar até um ano. Vale também lembrar que a qualidade de nossas cidades depende de processos naturais que não têm a ver apenas com a imagem da natureza, de modo que nos próximos anos deverão ganhar notoriedade as experiências que enfrentarem essa questão.

Não há independência da natureza jamais, pois devemos reconhecê-la em todos os processos ambientais, mesmo quando a imagem mobilizada pela palavra não é evidente, como no caso dos centros metropolitanos, com suas ruas impermeabilizadas, altos edifícios de vidro e profusão de veículos. Ainda nesse caso, trata-se de processos da natureza, a partir de condições de profunda alteração produzidas pelo trabalho humano acumulado na paisagem. O que ocorre é uma dissociação crescente entre sociedade e natureza, apesar de toda a voga ambientalista, agora assimilada e apropriada como mais uma modalidade do turismo.

O consumo de imagens de natureza para turismo parece presa a formas de apreciação principalmente nostálgicas, apesar de alguns componentes novos como o conceito de biodiversidade e algum relativismo cultural. O componente nostálgico não é bom ou ruim em si, mas no caso estrutura-se de um modo conservador, promovendo uma evasão que, nos destinos mais procurados, é tão hiper estimulante quanto a vivência urbana. Diga-se ainda que as paisagens urbanas também são paisagens tropicais em grande parte do território brasileiro, apesar de sua filiação subtropical europeia e norte-americana. Esta atitude evasiva perante a natureza reforça um comportamento socialmente conservador, apesar da valorização e do status que a natureza passa a contar atualmente e da emergência de práticas e comportamentos mais adequados à sua preservação, pode estar ignorando as prementes questões novas que começam a se colocar. Isto é, a mercantilização das paisagens tropicais e das imagens de natureza pode ser uma das formas de evasão das nossas reais condições contemporâneas de natureza, as quais ainda não foram devidamente descritas e discutidas.

A natureza que se deseja ver deverá ser qualificada nos contextos culturais que a desejam ver e usufruir. Cabe observar que são múltiplos os modos de apropriação e fruição dessa condição de natureza, oscilando, como nos exemplos citados, entre Fernando de Noronha e Bonito, até a problemática do rio Tietê, ou outras modalidades como os inúmeros hotéis fazenda, muitos dos quais voltados ao turismo baseado em referências naturais e culturais. Entender a natureza enquanto processos biofísicos decorrentes da análise científica é indispensável para definir formas de apropriação e delimitar impactos aceitáveis decorrentes. Tal conhecimento deve informar, a partir de planos específicos adequadamente fundamentados a utilização dos recursos naturais. Os objetivos desse uso, entretanto, são de ordem cultural. Nesse âmbito (e a ciência é parte disso), a paisagem natural é compreendida e valorada em determinada sociedade como uma projeção de desejos e significados humanos. Ou seja, a demarcação e delimitação da natureza é um ato cultural, não da natureza.

Quando ficamos deslumbrados diante dos recursos naturais em oposição àqueles decorrentes da sociedade industrial, como ocorreu no século XIX na origem das ideias modernas de conservação da paisagem, pode-se ter a impressão de uma natureza convidativa. Alerta-nos Simon Schama referindo-se ao processo de criação e apropriação de parques naturais norte-americanos, que é como se “a natureza tivesse a duras penas acumulado seus melhores tesouros a fim de atrair seus amantes para uma comunhão íntima e confiante com ela. Mas, é claro, a natureza não faz isso. Nós fazemos” (SCHAMA ,1996:17). E, se o fazemos, com o apelo e importância que discutimos neste capítulo, devemos nos entender como parte dessa natureza, a fim de definir tanto os objetivos do que seja o turismo em relação às áreas naturais, quanto desmistificando essa prática para procurar o entendimento da natureza em sua condição contemporânea. É inconcebível o encontro (ou percepção) da natureza apenas em fuga da natureza nas cidades, que é o ambiente onde de fato a enorme maioria deseja passar a maior parte de suas vidas.

Há uma dupla responsabilidade no percurso à natureza, de um lado a conservação de remanescentes nativos e belas paisagens, de outro, a qualificação dos ambientes cotidianos. Cabem ao turismo responsabilidades quanto a essas questões, tanto quanto cabem a quaisquer outras atividades sociais. A mercantilização da paisagem e de imagens da natureza subjugou seu caráter anárquico e selvagem, padronizando e institucionalizando sua vivência e comportamentos perante ela. Rever criticamente essa cultura para com a paisagem, seus mecanismos de identificação e representação, e os mecanismos de sua apropriação e conservação, em cada caso, pode contribuir para resgatar uma profundidade no “olhar” para as paisagens tropicais e suas práticas perante ela.

bibliografia citada

BELLUZZO, Ana Maria de Moraes. O Brasil dos viajantes. Vol. I -III. Rio de Janeiro, Fundação Odebrecht, 1995.
DEAN, Warren. A ferro e fogo. A história e a devastação da Mata Atlântica brasileira. São Paulo, Companhia das Letras, 1996.
GERBI, Antonello. O novo mundo. História de uma polêmica 1750-1900. São Paulo, Companhia das Letras, 1996.
GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO. Cuidando do planeta Terra. Uma estratégia para o futuro da vida. São Paulo, 1992, Sumário.
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Visão do paraíso (1958). São Paulo, Companhia Editora Nacional, Editora da Universidade de São Paulo, 1969.
IRWING, Marta Azevedo. Ecoturismo em áreas protegidas: um desafio no contexto brasileiro. In Boletim de Turismo e Administração Hoteleira, São Paulo, Unibero, 2000, vol. 9, n. 2 (outubro).
LAGE, Beatriz H. E MILONE, Paulo. Fundamentos econômicos do turismo. In LAGE, Beatriz H. E MILONE, Paulo C. (org.). Turismo Teoria e Prática. São Paulo, Atlas, 2000.
LENOBLE, Robert. História da ideia de natureza. Lisboa, Edições 70, 1990.
RIBEIRO, Gustavo Lins e BARROS, Flávia Lessa de. A corrida por paisagens autênticas: turismo, meio ambiente e subjetividade no mundo contemporâneo. In
SERRANO, Celia Toledo e BRUHNS, Heloisa (org.). Viagens à natureza. Campinas, Papirus Editora, 1997.
RODRIGUES, Adyr B. Turismo e espaço. São Paulo, Hucitec, 1999.
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SANDEVILLE JR., Euler . A nova Pangea e as ilhas: utopia e realidade no Resumo do Seminário I Jornada de Turismo, Meio Ambiente e Patrimônio Cultural. São Paulo: Unibero, Editora Aleph, MJ Livros, 2001.. In: Seminário I Jornada de Turismo, Meio Ambiente e Patrimônio Cultural, 2001, São Paulo, SO. Resumo do Seminário I Jornada de Turismo, Meio Ambiente e Patrimônio Cultural. São Paulo : Editora Aleph, MJ Livros, 2001. p. 41-47.
SCHAMA, Simon. Paisagem e memória. São Paulo, Companhia das Letras, 1996.

 

 

 


como citar:
SANDEVILLE JR., Euler. A paisagem natural tropical e sua apropriação para o turismo. In Eduardo Yázigi. (Org.). Turismo e Paisagem. São Paulo: Contexto, 2002, v. , p. 141-159

[para citar este artigo conforme normas acadêmicas, copie e cole a referência acima (atualize dia, mês, ano da visita ao sítio)]


 

 

 


a natureza e o tempo (o mundo)
um projeto de euler sandeville

 

 

 

Foto Euler Sandeville, Folha, detalhe, 2009.
Folha, detalhe. Foto de Euler Sandeville, 2009.

 

 

 

 

 

 

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