UM LONGO PERCURSO

UM LONGO PERCURSO
Euler Sandeville Jr., fev 2018

Neste texto indicaremos apenas a lenta construção de projetos do Núcleo de Estudos da Paisagem na sua seleção territorial e temática. O trabalho de Livre Docência (Sandeville Jr., 2011) apresenta até 2010 as pesquisas e estratégias do Núcleo de estudos da Paisagem no grupo de pesquisa Processos Colaborativos e Ações Educativas. Lembramos que há uma outra frente de trabalho no Núcleo de Estudos da Paisagem, definida pela linha de pesquisa História da Cultura e da Paisagem: Representações e Poéticas, cujos procedimentos são de outra natureza e seu desenvolvimento não está relatado aqui.

A partir de 2002 a pesquisa docente adotava como área de investigação a Reserva da Biosfera do Cinturão Verde de São Paulo, intentando ter como foco prioritário a região norte, no recorte da Serra da Cantareira/Juqueri/Jaraguá, tendo quase implantado um primeiro escritório piloto do NEP no Parque do Juqueri.

Essa história não começou por aí, na constituição do NEP entre 2002 e 2003. Embora não vá aqui fazer uma reconstituição de um longo percurso, a adoção de áreas de estudo passa tanto por experiências anteriores, quanto por desejos e afinidades de pesquisadores que vão se agregando, quanto por uma intencionalidade de construção do conhecimento. Para revelar um pouco a intencionalidade desse processo, relatarei algumas experiências, que devem ser agregadas às dos outros parceiros na jornada do Núcleo de Estudos da Paisagem.

Tiveram um impacto imenso em mim o casario da ocupação periférica sobre os morros a partir de percursos realizados por volta de 1985-1986 na zona sul, atravessando paisagens desde a área central, passando por Santo Amaro, até locais cheios de energia e com uma beleza própria, os lugares até então peculiares e inesperados para mim em Cratera, Marsilac, Colônia etc., travessias de balsa, o casario de autoconstrução pelos morros postos assim em contraste com as áreas verticalizadas e mais estruturadas dos jardins e do centro, a floresta pujante além desse longo espraiamento da cidade. Todas as questões fundamentais, da experiência e da vivência, da forma, da criatividade, do cotidiano, da liberdade de expressão, que havia buscado na arte, encontravam ressonância nessa paisagem abandonada pela “cidade oficial”, invisível para a maioria dos paulistanos, recusada, embora tão cheia de energia, criatividade, luta pela vida.

Esses transeptos por diversas configurações urbanas, convergindo em paisagens naturais insuspeitadas até então em São Paulo (para mim), proporcionavam a compreensão empírica da estrutura urbana e de seus imensos contrastes sociais e espaciais, e colocavam a paisagem como um campo fascinante de estudos e aplicação. As qualidades estéticas e a vitalidade dessas ocupações periféricas, a diversidade de situações do urbano e das áreas ainda preservadas, os contrastes intensos, me sugeriam a possibilidade de um resgate, por meio da paisagem, do sentido que buscava pela arte e que revelava (para mim) um esgotamento em sua captura entediante pelas instituições. Os transeptos realizados pela paisagem paulistana possibilitaram uma experiência estética, mas dotada de uma intencionalidade intelectiva na qual a paisagem compareceria então em um novo patamar.

Embora todas as experiências humanas tenham uma dimensão estética (mesmo que distraída), refiro-me a uma experiência excepcional, como um momento de duração intensa (de alguns segundos a meses, à revelia de qualquer mensuração cronológica), de uma síntese sensível que transforma a percepção e intelecção de vários aspectos da vida. A criação do Núcleo de Estudos da Paisagem não existiria sem essas possibilidades que obtiveram um programa em 2002 na Espiral da Sensibilidade e do Conhecimento. Costumo referir até aqui em minha vida a cinco experiências estéticas fundamentais (que são crescentemente existenciais): com a luz (nos anos 1970), com a paisagem (cerca de 1985), com as proporções e a harmonia a partir da paixão (por volta de 1997), com o tempo (a partir de 2006), com os limiares (“as formas da morte e as possibilidades da vida” em 2010). Todas elas ampliaram meus horizontes para outros aspectos da vida, irradiando de uma percepção inicial, que preenche de novos significados outras esferas da percepção e da sociabilidade, da relação intelectual e afetiva com o mundo.

Após um tempo e intensas atividades docentes, em que procurava formatos de aproximação da universidade com o ambiente em que se insere, de uma capacidade para intervir no real e por ele ser transformado, igualmente decisivas para o que fazemos hoje no NEP (experiências em supletivo em universidades (1984, 1986-1991, 1999), e de integração universidade-setor público, 1989-1990) um conjunto de transeptos novos se impôs. Geralmente, em uma outra escala territorial, certamente plenos de uma condição estética fundamental, e portanto cognitiva. Os principais percursos novos foram: São Francisco (1989), cidades turísticas no interior de Goiás (1999), partindo do percurso pelo São Francisco o perímetro da Chapada Diamantina (1999), fui pela primeira vez para a Europa (2000), percorrendo por um mês e meio, sem destino e ao acaso dos acontecimentos, Londres, Paris, Veneza, Florença, Siena, Pisa, pequenas cidades, Roma, Belgrado (então sob o embargo das Nações Unidas, que me mostrou uma outra Europa), várias cidades de pouco atrativo turístico no norte do Paraná (2001), vários bairros periféricos em São Paulo, retomando a experiência na zona leste e sul (1986-1987), agora nas bordas da Cantareira tanto pela zona Norte até Mairiporã, Brasilândia e Taipas (1998-2002), e outros Estados, como o litoral do Rio, Espírito Santo e sul da Bahia (2002), seguindo da foz à nascente do Jequitinhonha, com um desvio pelo Araçuaí (2002). Foi nesta última que realizei sínteses de intuições e conceitos que vinha indagando e concebi a proposta do Núcleo de Estudos da Paisagem que ainda está se desdobrando hoje. Foi nesse momento que encontrei a convicção, agora mais segura, para criar e estabelecer a direção do grupo de pesquisa que veio a se chamar Núcleo de Estudos da Paisagem, atualmente entrando em uma quarta fase dos trabalhos.

Novamente, as paisagens e as formas de sua apropriação me propunham um vocabulário, uma linguagem mesmo, formas de sociabilidade fascinantes nas quais seus significados se embrenhavam em mim através das pessoas. Partilhei novos modos de vivenciar a paisagem com as pessoas que entrecruzava no percurso, algumas presentes até hoje. Em especial no percurso pelo Jequitinhonha elas me ensinaram a ver de um outro modo, mais amplo. Não havia uma distância epistemológica a nos definir; eu é que aprendia com elas. Pessoas, umas diante das outras, isso o que nos definia. Não eram, todas essas mencionadas, apenas viagens, eram parte de uma indagação existencial e de significação da produção intelectual, eram pesquisa, precisando encontrar nova vitalidade indagativa e inserção no ambiente acadêmico da universidade pública que começava a conhecer não mais como pesquisador, mas como docente (1986-1987; 2001-…).

Concebi nesses trajetos e vivências a paisagem não apenas como um processo sensível, que é, mas também como uma possibilidade de estudos, que proporciona a aproximação de questões da arte ao urbano como espaço de vida coletivo e, ao mesmo tempo, subjetivo, passível de ser compreendido, estudado. Abri-me a mundos dotados de vida e força própria, plenos de vitalidade, tratados como invisíveis, apesar da sua potência como fato social, como arquitetura da cidade e paisagem urbana. Essa possibilidade de tornar a paisagem generosa ao nosso aprendizado nos traz a responsabilidade de responder do mesmo modo em nosso desejo de aprender, e só assim a paisagem merece ser estudada pela perspectiva do arquiteto urbanista, do geógrafo, do cientista, do artista, levando-nos a um desafio intelectual novo em que o desejo de ensinar seja o de aprender.

Disso decorreu a postulação da Espiral da Sensibilidade e do Conhecimento e do entendimento das paisagens como experiências partilhadas, que já vinha desenvolvendo lentamente desde os anos 1980, mas agora se constituía como programa de trabalho e de pesquisa. Era necessário então verificar a base empírica da proposição de estudo das paisagens como experiências partilhadas. Com a criação do grupo de pesquisa em 2003 e com o ingresso de pós-graduandos e graduandos no Núcleo a partir de 2004, movidos por um coração inquieto e aberto, isso foi possível. Até 2008, além das pesquisas que dão conta de uma ampla aproximação das questões da paisagem, foi possível iniciar uma série de experimentações colaborativas com parceiros externos à universidade associada muitas vezes a experiências didáticas. Envolveu nessa primeira fase estudos em São Paulo em áreas periféricas, no interior e no litoral do Estado de São Paulo e em áreas rurais ou tradicionais no interior do estado de São Paulo e em outros Estados, em Minas Gerais, Paraná e Santa Catarina.

A partir de 2009, julguei interessante pensar uma nova estratégia de investigação dessa base empírica, que permitisse estabelecer um vínculo e uma cooperação no entendimento da base territorial, o que foi feito adotando-se a Região Metropolitana de São Paulo como área prioritária de estudos do grupo, sendo que a partir de 2009 as frentes de experimentação colaborativa e didática estabeleceram um diálogo crescente com os pesquisadores em suas áreas de pesquisa. Por volta de 2011 os avanços já mostravam o acerto dessa estratégia tanto na dinâmica interna do grupo quanto na discussão da cidade, possibilitando nuclear as pesquisas por setores e problemáticas urbanas, sugerindo a possibilidade, de fato adotada, de uma maior convergência das pesquisas no grupo, a par de uma maior capacidade de ação do grupo com parceiros externos.

clique aqui para acessar arquivo pdf com ações entre 2002 e 2010.

Essa estratégia permitiu adotar frentes temáticas de estudo, sendo a que possibilitou uma maior investigação do Núcleo na região de mananciais ao sul. Das experiências acumuladas nas disciplinas e nas ações participativas – em especial Atibaia, Pirajussara, Heliópolis, Brasilândia – e da integração das pesquisas em grupos de estudo colaborativo sobre os fundamentos e procedimentos de pesquisa, foi possível organizar as pesquisas e grupos de estudo também por regiões em que se localizavam as pesquisas na cidade, com destaque para a região noroeste com a Brasilândia e com na área de mananciais.

O grupo iniciava assim uma terceira fase, marcada essa transição também pela cooperação em grupos de pesquisa envolvendo dezenas de docentes e pesquisadores da Universidade em trono de encaminhamentos para questões e ambientais e naturais na Região Metropolitana. O passo seguinte foi dado na região de Perus com coletivos de cultura e educação em torno de busca de solução para questões ambientais e sociais, permitindo avançar em um projeto antigo do Núcleo, e inclusive ampliá-lo: a ideia da UNIVERSIDADE LIVRE E COLABORATIVA. Inicialmente a entendíamos como o oferecimento de disciplinas de graduação e pós organizadas conjuntamente com parceiros externos e ministradas nessas localidades, integradas se possível com pesquisas e projetos de formação de professores, lideranças etc. Mas novas condições surgiram com os trabalhos realizados com professores, artistas jovens e lideranças de Perus a partir de 2012.

Com isso, direcionamos as prioridades de investigação para a região noroeste, definida como região Cantareira/Juqueri/Jaraguá, que já estava na origem das intenções do grupo em 2003, mas apenas as pesquisas na Brasilândia até então haviam prosperado com o trabalho de Cecilia Angileli.  Complementarmente, mantemos um interesse prioritário de pesquisa na região centro-oeste, mas atividades mais pontuais com outras comunidades a leste e a oeste também mostraram-se extremamente ricas para os processos de aprendizagem colaborativa em curso. Os estudos e vivências ao se multiplicarem assim pelo território da cidade, acabaram colocando evidente a necessidade de compreender, ao menos em alguma medida, interações escalares em um âmbito regional, de modo que o vetor noroeste e oeste da Macrometrópole entra em nosso horizonte de entendimento. A descrição dessas fases até 2010 está em minha Livre Docência, e na apresentação das fases da pesquisa Paisagem Partilhada em outra seção deste sítio e no Lattes.

Após um interregno para refletir sobre minha produção e inserção, entre 2015 e 2017, retomamos a proposta do Núcleo de estudos da Paisagem, entrando em uma terceira fase que integra plenamente nos propósitos do Núcleo as duas linhas de pesquisa – História da Cultura e da Paisagem: Representações e Poéticas e Processos Colaborativos e Ações Educativas -e tendo como foco prioritário para as ações com parceiros externos as ações educativas, priorizando escolas públicas e formação de professores como ponto de partida de uma nova construção possível desses trabalhos. A descobrir caminhando, e estamos começando em 2018 a construir essa nova proposta.

A adoção de recortes espaciais apoia-se portanto em uma estratégia de construção do conhecimento e da ação institucional do grupo que é a um tempo pensada, a um tempo descoberta no caminho, sempre reorganizando-se em tempo real diante dos acontecimentos. É preciso ter claro que não se trata de áreas de aplicação, o que não são. São espaços de vida. Ao verificar em ÁREAS DE TRABALHO (2002-2015) ↑ as áreas em que já foram ou estão sendo desenvolvidas pesquisas e atividades didáticas, tenha em mente que um recorte territorial não é apenas uma área de estudo entre outras. É mais do que uma opção metodológica e distanciada. Decorre de opções vitais, de experiências vividas, de desejos e de possibilidades cognitivas muito ricas, que se realizam no diálogo intenso com outros viventes no mundo, em um crescimento que exige tempo. São espaços de descoberta da vida.

aprender com a cidade, aprender na cidade


para citar este artigo:

SANDEVILLE JR., Euler. “Um longo percurso (2003-2015)”. Ensino e Pesquisa+Biosphera21, on line, 2018.


 

 

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